O escravo narcisista

Osmundo Pinho
65 min readOct 1, 2023

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Frank B. Wilderson, III / Tradução: Osmundo Pinho

Uma cultura da política[i]

Na introdução e no capítulo anterior, vimos como a aporia entre o ser negro e a ontologia política existe desde a escravização dos africanos pelos árabes e europeus, e como a necessidade de elaborar um conjunto de questões através das quais se chega a uma análise paradigmática inabalável da ontologia política é repetidamente frustrada nas suas tentativas de encontrar uma linguagem que possa expressar a violência da escravização, uma violência que é ao mesmo tempo estrutural e performativa. O discurso humanista, o discurso cujas maquinações epistemológicas fornecem nossas estruturas conceituais para pensar a ontologia política, é diverso e contrário. Mas, apesar de toda a sua diversidade e contrariedade, é suturado por um consenso retórico implícito de que a violência atinge o corpo humano como resultado de transgressões, sejam reais ou imaginárias, dentro da Ordem Simbólica. Ou seja, o discurso humanista só pode pensar a relação de um sujeito com a violência como uma contingência e não como uma matriz que posiciona o sujeito. Dito de outra forma, o Humanismo não tem uma teoria do escravo porque imagina um sujeito que foi alienado na linguagem (Lacan, 1977) e/ou alienado das suas capacidades cartográficas e temporais (Marx, 1976). Não se pode imaginar um objeto que tenha sido posicionado através de violência gratuita e que não tenha capacidades cartográficas e temporais a perder — um ser senciente para quem o reconhecimento e a incorporação são impossíveis. Em suma, a ontologia política, tal como imaginada através do Humanismo, só pode produzir um discurso que tenha como fundamento a alienação e a exploração como gramática do sofrimento, quando o que é necessário (para o Negro, que sempre já é um escravo) é um conjunto de questões ontológicas que tem como fundamento a acumulação e a fungibilidade como gramática do sofrimento (Hartman, 1997).

A violência da Passagem do Meio (middle passage) e da propriedade escravista (Spillers, 1987), tecnologias de acumulação e fungibilidade, recompõem e reencenam os seus horrores sobre cada geração sucessiva de Negros. Esta violência é gratuita, isto é, não depende de transgressões contra a hegemonia da sociedade civil; e estrutural, na medida em que posiciona os negros ontologicamente fora da humanidade e da sociedade civil. Simultaneamente, torna o estatuto ontológico da humanidade (a própria vida) totalmente dependente da compulsão à repetição da sociedade civil: as maquinações frenéticas e fragmentadas através das quais a sociedade civil reencena a violência gratuita sobre os negros — para que a sociedade civil possa conhecer-se como o domínio dos humanos — geração após geração.

Novamente, precisamos de uma nova linguagem de abstração para explicar esse horror. O poder explicativo do discurso humanista está falido diante dos negros. É inadequado e não essencial, bem como parasitário, ao conjunto de questões que a coisa morta, mas senciente, o Negro, luta para articular num mundo de sujeitos vivos. Meu trabalho sobre cinema, teoria cultural e ontologia política marca minha tentativa de contribuir para essa busca, muitas vezes fragmentada e constantemente atacada, de forjar uma linguagem de abstração com poderes explicativos suficientemente enfáticos para abranger o Negro, um objeto acumulado e fungível, em um mundo humano, de sujeitos explorados e alienados.

A imposição da lógica presumida do Humanismo sobrecarregou os estudos cinematográficos negros na medida em que é subscrita pela lógica presumida dos estudos cinematográficos brancos ou não-negros. Este é um problema dos Estudos Culturais em grande escala. Neste capítulo, quero oferecer uma breve ilustração de como podemos tentar romper o impasse teórico entre, por um lado, a lógica presumida dos Estudos Culturais e, por outro lado, a afasia teórica a que os Estudos Culturais são reduzidos quando se deparam com o estatuto (não) ontológico do Negro. Farei isso não lançando um ataque frontal contra a teoria branca do cinema, em particular, ou mesmo contra os Estudos Culturais em termos gerais, mas interrogando Jacques Lacan — porque a psicanálise lacaniana é um dos pilares gêmeos que sustentam a teoria do cinema e os Estudos Culturais.

O meu problema com os Estudos Culturais é que quando teorizam a interface entre Negros e Humanos, tornam-se prejudicados nas suas tentativas de (a) expor as relações de poder e (b) examinar como as relações de poder influenciam e moldam a prática cultural. Os Estudos Culturais insistem numa gramática do sofrimento que pressupõe que todos estamos posicionados essencialmente por meio da Ordem Simbólica, o que Lacan chama de muro da linguagem — e como tal o nosso potencial para stasis ou mudança (nossa capacidade de sermos oprimidos ou livres) é sobredeterminado pela nossa capacidade ou incapacidade “universal” de apreender e manejar armas discursivas. Esta ideia corrompe o poder explicativo da maioria dos filmes socialmente engajados e até mesmo da linha mais radical de ação política, porque produz um cinema e uma política que não consegue dar conta da gramática do sofrimento do Negro — o Escravo. Para ser franco, o trabalho imaginativo (Sexton, 2003) do cinema, da ação política e dos Estudos Culturais são todos afetados pela mesma afasia teórica. Eles ficam sem palavras diante da violência gratuita.

Esta afasia teórica é sintomática de um conjunto debilitado de questões relativas à ontologia política. No seu cerne estão dois registros de trabalho imaginativo. O primeiro registro é o da descrição, o trabalho retórico que visa explicar o modo como as relações de poder são nomeadas, categorizadas e exploradas. O segundo registro pode ser caracterizado como prescrição, o trabalho retórico baseado na noção de que todos podem ser emancipados através de alguma forma de intervenção discursiva ou simbólica.

Mas a emancipação através de alguma forma de intervenção discursiva ou simbólica é insuficiente face a uma posição de sujeito que não é uma posição de sujeito — o que Marx chama de “um instrumento falante” ou o que Ronald Judy chama de “uma interdição contra a subjetividade”. Em outras palavras, o Negro tem capacidade senciente, mas nenhuma capacidade relacional. Enquanto objeto acumulado e fungível, em vez de sujeito explorado e alienado, o Negro é abertamente vulnerável aos caprichos do mundo; assim também como a sua “produção” cultural. O que significa — o que está em jogo — quando o mundo pode transpor caprichosamente os gestos culturais de alguém, a substância de sua intervenção simbólica, em um outro bem mundano, uma mercadoria de estilo? Fanon ecoa esta questão quando escreve: “Eu vim ao mundo imbuído da vontade de encontrar um significado nas coisas, meu espírito cheio do desejo de alcançar a fonte do mundo, e então descobri que era um objeto em meio a outros objetos” (Fanon, 1967: 109). Fanon esclarece esta afirmação e alerta-nos para os riscos que os pressupostos otimistas dos Estudos Cinematográficos e dos Estudos Culturais, a promessa contra-hegemônica do cinema alternativo e o projeto emancipatório das políticas de coalizão não podem dar conta, quando escreve: “A ontologia — uma vez finalmente admitida como deixando a existência de lado — não nos permite compreender o ser do negro…” (idem: 110).

Isto representa um desafio para a produção cinematográfica e para os estudos cinematográficos, dado o seu cultivo e elaboração pelo trabalho imaginativo dos Estudos Culturais, subscritos pela lógica presumida do Humanismo; porque se todos não possuem o DNA da cultura, isto é, (a) capacidade transformadora do tempo e do espaço, (b) um status relacional com outros Humanos através do qual a capacidade transformadora do tempo e do espaço é reconhecida e incorporada, e © uma relação com a violência que é contingente e não gratuita, então como teorizamos um ser senciente que é posicionado não pelo DNA da cultura, mas pela estrutura da violência gratuita? Como podemos pensar fora do quadro conceitual da subalternidade — isto é, fora do poder explicativo dos Estudos Culturais — e pensar para além dos limites da agência emancipatória através da intervenção simbólica?

Apelo a um quadro conceptual diferente, baseado não no efeito-sujeito do desempenho cultural, mas na estrutura da ontologia política; aquele que nos permite substituir uma política da cultura por uma cultura da política. O valor disto não reside simplesmente na forma como nos ajudaria a repensar o cinema e a performance, mas na forma como nos pode ajudar a teorizar o que é atualmente apenas intuitivo e anedótico: o fosso intransponível entre o ser negro e a vida humana. Para ser mais preciso, tal enquadramento poderia aumentar o poder explicativo da teoria, da arte e da política, destruindo e talvez reestruturando o alcance ético do nosso atual conjunto de questões. Isto tem implicações profundas para os estudos de cinema não-negros, para os estudos de cinema negro e para os estudos afro-americanos em grande escala, porque estes estão atualmente enredados num paradigma multicultural que se interessa por uma análise comparativa insuficientemente crítica — isto é, uma análise comparativa que está em busca de uma política de coalizão (se não na prática, pelo menos como uma metáfora teorizante) que, por sua própria natureza, exclui e expulsa a gramática do sofrimento do Escravo.

Os dilemas dos estudos do cinema negro

Na esteira da reação pós-Civil Rights e pós-Black Power, um pequeno, mas crescente círculo de teóricos Negros voltou à surpreendente afirmação de Fanon de que “a ontologia — uma vez que é finalmente admitida como deixando a existência pelo caminho — não nos permite entender o ser do homem negro [sic]. Pois não só o homem negro deve ser negro; mas ele deve ser negro em relação ao homem branco [sic]” (Fanon, 1967: 110). Embora não formem nada tão ostentoso como uma escola de pensamento, e embora a sua atitude em relação a Fanon e o seu reconhecimento não contribuam para um consenso fácil, o apelido de Afro-Pessimistas não infringe diferenças individuais nem exagera a fidelidade a um conjunto partilhado de suposições. Deve-se notar que dos afropessimistas — Hortense Spillers, Ronald Judy, David Marriott, Saidiya Hartman, Achille Mbembe, Frantz Fanon, Kara Keeling, Jared Sexton, Joy James, Lewis Gordon, George Yancey e Orlando Patterson — apenas James e Patterson são cientistas sociais. O resto sai das Humanidades. Fanon, claro, era doutor em psiquiatria. Lendo-os e ligando os pontos ao nível dos pressupostos partilhados, em vez do conteúdo do trabalho deles ou dos seus gestos prescritivos (se houver), torna-se claro que, embora o trabalho deles mantenha os protocolos intelectuais de identificação inconsciente responsáveis pela posicionalidade estrutural, eles fazem isso de uma forma que enriquece, em vez de empobrecer, a forma como somos capazes de teorizar a identificação inconsciente. Isso quer dizer que embora as meditações sobre identificações inconscientes e interesses pré-conscientes possam ser o seu ponto de partida (ou seja, como curar o “branqueamento alucinatório” [Fanon, 1967], e como pensar sobre a divisão entre negros e não-negros — que está substituindo rapidamente a divisão entre negros e brancos [Yancey, 2003]) — eles são, em primeira instância, teóricos da posicionalidade estrutural[ii].

Os afro-pessimistas são teóricos da posicionalidade negra que compartilham a insistência de Fanon de que, embora os negros sejam de fato seres sencientes, a estrutura de todo o campo semântico do mundo — independentemente das discrepâncias culturais e nacionais — “deixando” como diria Fanon, “a existência pela beira do caminho” — é suturado pela solidariedade anti-negra. Ao contrário dos estudos orientados para soluções, baseados em interesses ou dependentes do hibridismo, tão em voga hoje, o Afro-Pessimismo explora o significado da negritude não — em primeira instância — como uma identidade interpelada de forma variada e inconsciente ou como um ator social consciente, mas como uma posição estrutural de incomunicabilidade face a todas as outras posições; este significado é incomunicável porque, mais uma vez, como posição, a negritude baseia-se em modalidades de acumulação e fungibilidade, e não de exploração e alienação. Infelizmente, nem a Teoria do Cinema Negro nem a Teoria do Cinema Branco parecem ter feito esta mudança da exploração e da alienação como aquilo que posiciona o sujeito cinematográfico “universal” da Teoria do Cinema em relação ao genocídio, à acumulação e à fungibilidade como modalidades de violência gratuita que posiciona o Escravo. A este respeito, a Teoria do Cinema mistifica os antagonismos estruturais e atua como cúmplice da estabilidade social e política. Mesmo a maior parte da Teoria do Filme Negro baseia-se numa lógica presumida de exploração e alienação, em vez de acumulação e fungibilidade, quando se trata do estatuto ontológico do Negro.

A Teoria do Cinema, no que diz respeito ao cinema negro americano entre 1967 e a atualidade, é marcada por diversas características. Quase todos os livros e artigos são subscritos por um sentimento de urgência em relação à história trágica e ao futuro sombrio de um grupo de pessoas marcadas pela escravidão no Hemisfério Ocidental; este, todos concordariam, é o elemento constitutivo da palavra Negro (Black). Para este fim, a maioria está preocupada com a forma como a representação cinematográfica acelera esse futuro sombrio ou intervém contra ele. O cinema tem então valor pedagógico, ou, talvez mais precisamente, potencial pedagógico. Em termos gerais, a teoria do cinema negro depende destas questões: O que o cinema ensina aos negros sobre os negros? O que o cinema ensina aos brancos (e outros) sobre os negros? Essas lições são dialógicas com a libertação negra ou com a nossa morte futura e rapidamente repetitiva?

Dado o período em consideração, a escrita dos teóricos negros do cinema tende a partilhar uma ansiedade comum no que diz respeito ao estatuto do texto fílmico e à natureza da sua coerência. Mas tenhamos em mente um ponto que desenvolverei a seguir: a base dessa ansiedade tem a ver com o valor hegemônico do filme — como se existissem representações que tornariam os negros seguros, representações que nos colocariam em perigo, representações que nos tornarão ideologicamente conscientes e aqueles que nos darão uma falsa consciência. Para muitos, muita ênfase é colocada no poder interpelativo do próprio filme.

Figura 1: “Guess Who’s Coming to Dinner” (1967)

Em “Representing Blackness: Issues in Film and Video”, Valerie Smith observa duas tendências dominantes: o primeiro impulso lê “autêntico” como sinônimo de “positivo” e busca suplantar as representações da lascívia e da “irresponsabilidade” negras por representações “respeitáveis”. Para esse fim, ela observa “The Learning Tree” (1968), de Gordon Parks, e “Cooley High” (1975), de Michael Schulz. Mas acrescenta que também podemos encontrar esse impulso manifestado nos filmes de certos diretores brancos: “Home of the Brave” (1949) e “Guess Who’s Coming to Dinner” (1967), de Stanley Kramer, “In the Heat of the Night” (1967), de Norman Jewison, e “Passion Fish”, de John Sayles (1992). O segundo impulso não se preocupa em demonstrar até que ponto os personagens negros podem se conformar às noções de respeitabilidade recebidas e codificadas pela classe. Em vez disso, iguala autenticidade à liberdade de capturar e reanimar tipos anteriormente codificados como “negativos” (isto é, o criminoso ou o bufão) ou à presença de práticas culturais enraizadas na experiência vernácula negra (jazz, gospel, rootworking, religião, etc.). “Black and Tan” (1929), de Duke Ellington, é um dos primeiros exemplos; depois — após as duas Grandes Migrações — os filmes Blaxploitation urbanos e autênticos do final dos anos 60 e dos anos 70 e, finalmente, os filmes “new jack” dos anos 90: “New Jack City” (1991) e “Menace II Society” (1993).

Figura 2: “Menace II Society” (1993)

Smith afirma que não apenas o cinema negro tem se preocupado com uma resposta à representação visual negativa, mas que essa preocupação também tem sobredeterminado a crítica ao filme negro: ou seja, identificando e criticando a recorrência de representações estereotipadas em filmes de Hollywood, o trabalho de Bogle, “Toms, Coons, Mulattoes”… e Cripps “inventaria a reprodução de certos tipos de personagens negros na mídia visual”. Smith chama estes textos de “inovadores”, mas diz que “eles também legitimaram um binarismo no discurso em torno das estratégias de representação negra que perdeu a sua utilidade”.

Além disso, ela elabora:

É verdade que, apesar da sua construção, as representações mediáticas de membros de comunidades historicamente marginalizadas refletem e, por sua vez, afetam as circunstâncias vividas por pessoas reais. Mas a relação entre as representações mediáticas e a “vida real” não é senão complexa e descontínua; postular uma correspondência direta entre a inescapabilidade de certas imagens e a distribuição desigual de recursos dentro da cultura é negar as formas elaboradas pelas quais o poder é mantido e implantado (Smith, 1997: 3).

O problema com o debate positivo/negativo, como Smith e uma Segunda Onda (minha abreviação) de teóricos do cinema negro como bell hooks, James Snead e Manthia Diawara o veem, é primeiro que o debate concentra o escrutínio crítico nas maneiras pelas quais os negros foram representados em filmes de Hollywood às custas de trabalhos analíticos, teóricos e/ou históricos sobre a história do cinema dirigido por negros. Em segundo lugar, pressupõe consenso sobre o que realmente é uma imagem positiva ou negativa (ou autêntica). Negros heterossexuais trabalhadores, de classe média, podem ser positivos para alguns telespectadores negros, mas repreensíveis (mesmo que apenas pelo fato de serem totalizadores) para a comunidade negra de gays e lésbicas. Terceiro, “focaliza a atenção do espectador na existência de certos tipos e não nas questões mais significativas em torno do tipo de trabalho narrativo ou ideológico que esse tipo pretende realizar” (Idem: 3).

“Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, & Bucks: An Interpretive History of Blacks in American Films”, de Donald Bogle, revela a maneira como a imagem dos negros nos filmes americanos mudou e também a maneira (ele diria “chocante”) como ela mudou, permanecendo a mesma. Em 1973, o estudo de Bogle foi a primeira história de atores negros no cinema americano. Bogle observa que apenas um outro “trabalho formal” foi escrito antes dele, “The Negro in Films”, do inglês Peter Noble, escrito na década de 1940. Bogle não diz se isto é um artigo ou um livro (a impressão que se tem é que se trata de um artigo) e prossegue descartando-o como “a abordagem típica, involuntariamente paternalista, liberal branca de ‘bom gosto’” (Bogle, 1989 [1973]: 27). Como ele mesmo admite, Toms, Coons… é tanto uma história das contribuições dos atores negros no cinema americano quanto uma declaração de sua própria estética e perspectiva em evolução.

O livro de Bogle é reconhecido por muitos como um estudo clássico e definitivo das imagens negras em Hollywood. Eu preferiria clássico e exaustivo — deixando o adjetivo “definitivo” para o três vezes mais curto “White Screens, Black Images” de James Snead. O livro de Bogle é mais um inventário histórico (e todos lhe somos gratos por isso) do que uma história ou historiografia. Se houve uma pessoa negra que teve um papel falante em um filme de Hollywood, é mais do que provável que ela esteja inventariada no livro de Bogle. Antes deste inventário, não só não havia um registo cinematográfico publicado de tantas estrelas negras nos primeiros setenta anos do século XX, mas para muitas delas, como Bogle aponta na primeira metade do seu livro, não havia registro público deles como pessoas: “[A] vida dos primeiros artistas negros… geralmente terminava tão tragicamente, ou tão desesperadamente insatisfeita, com Hollywood muitas vezes contribuindo para suas tragédias… Um importante ator negro terminou seus dias como redcap . Outro tornou-se um famoso pool-shark do Harlem. Alguns se tornaram traficantes de todos os tipos. Pelo menos duas protagonistas vivazes acabaram como empregadas domésticas. Outros luminares negros caíram no alcoolismo, nas drogas, no suicídio ou na amarga auto-recriminação ”(Idem: 42).

“Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, & Bucks” de Bogle, o conhecido “Black Film as Genre” de Thomas Cripps e “Black Film as a Signifying Practice: Cinema, Narration and the African American Aesthetic Tradition” de Gladstone L. Yearwood são três dos primeiros exemplos do que chamo Teoria do cinema negro da Primeira Onda (com a notável exceção de Yearwood, que começou a escrever quase trinta anos depois de Bogle e Cripps) e vozes decididamente enfáticas que teorizam o valor emancipatório/pedagógico do cinema negro, do texto para o espectador. Eles “enfatizam a necessidade de papéis, tipos e representações mais positivos, ao mesmo tempo em que apontam a presença intratável de ‘estereótipos negativos’ na representação dos negros pela indústria cinematográfica” (Snead, 1994). Aqui, contudo (mais uma vez com a notável excepção de Yearwood), as ferramentas semióticas, pós-estruturalistas, feministas e psicanalíticas dos Modernistas Políticos foram negligenciadas na sua busca pela imagem “negativa” ou “positiva”. O trabalho de Yearwood é uma excepção na medida em que ele de facto utiliza as ferramentas anti-essencialistas da semiótica e do pós-estruturalismo num esforço para apelar a uma estética afrocêntrica e essencialista.

Yearwood argumenta que a crítica do cinema negro é melhor compreendida como um desenvolvimento do século XX na história do pensamento estético negro. Ele afirma que os cineastas negros utilizam formas expressivas e sistemas de significação que refletem as prioridades culturais e históricas da experiência negra. Dessa forma, o livro ressoa com muito do que é apresentado no volume de ensaios editados de Diawara, “Black American Cinema”. No entanto, o afrocentrismo do livro de Yearwood, por vezes, parece tentar isolar os processos narrativos do filme negro da posicionalidade dos cineastas negros sob o despotismo da supremacia branca.

A primeira parte do livro de Yearwood apresenta uma visão geral do cinema negro e uma introdução à cultura cinematográfica negra. Examina o surgimento do movimento cinematográfico independente negro a partir da perspectiva da tradição cultural negra. Isto marca um afastamento de muito do que acontece no “Black American Cinema” de Diawara, que localiza o surgimento do filme negro independente em relação a certos textos políticos (como “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon) e às lutas nacionais e internacionais pela libertação e pela autodeterminação. O livro de Yearwood oferece uma leitura atenta dos filmes no nível da diegese, mas também revela uma espécie de ansiedade conceitual em relação ao objeto histórico de estudo — em outras palavras, ele se apega, ansiosamente, ao filme-como-texto- como objeto legítimo do cinema negro. Yearwood escreve:

O termo cinema negro descreve um conjunto específico de filmes produzidos na diáspora africana que partilha uma problemática comum… Uma suposição primária é que a cultura negra é de natureza sincrética e reflete formas hibridizadas que são únicas nas Américas. Este processo de crioulização, que é evidente na música clássica afro-americana (Jazz), representa a forja de uma nova ontologia e epistemologia. É o produto de práticas culturais que se desenvolveram a partir da experiência da escravatura, da luta pela libertação da opressão e do reconhecimento de que a interdependência é a chave para a nossa sobrevivência (Yearwood, 2000:5).

Mais tarde ele observa:

Como expressão que emana do coração da comunidade afro-americana, um bom filme negro pode representar o que há de mais único e melhor na cultura negra. Um bom filme negro pode proporcionar um desafio intelectual e envolver as nossas faculdades cognitivas. Muitas vezes pode apresentar comentários incisivos sobre realidades sociais. (Idem:70)

Essas duas citações são emblemáticas de quão vaga pode ser a base estética da tentativa de Yearwood de construir um cânone. O que é ótimo no livro é a síntese de grande parte da literatura sobre filmes negros que o precede (incluindo o trabalho de Diawara). Mas ao tentar mostrar como os cineastas negros diferem dos cineastas brancos e como o filme negro como texto é um objeto independente, Yearwood recorre a conclusões gerais o suficiente para serem aplicadas a quase qualquer filmografia e, além disso, suas afirmações são apoiadas por tratados filosóficos e semióticos de teóricos europeus (não africanos).

James Snead, Jacqueline Bobo, bell hooks, Valerie Smith e Manthia Diawara pertencem ao que chamo de Segunda Onda de teóricos do cinema negro que complicaram o campo através do uso de metodologias que (a) examinam o filme como um texto, um discurso, e (b) trazem para este exame uma exploração dos efeitos-de-sujeito do cinema sobre os espectadores implícitos. A ênfase aqui deveria ser implícita, pois, na maioria dos casos, esses livros e artigos não são fundamentados em teorias e metodologias evidentes de recepção. O avanço, por assim dizer, deste corpo de trabalho em relação ao de Cripps e Bogle é duplo. Em primeiro lugar, estas obras desafiaram o binarismo entre imagens boas/más, positivas/negativas do cinema. Assim, eles abriram espaço para a iconografia de terceiras posições, como mulheres negras solteiras, gangsters, gays e lésbicas, entrarem na “família” cinematográfica negra. Em segundo lugar, através de análises textuais sofisticadas, foram capazes de mostrar como as imagens Negras podem ser degradadas e as imagens Brancas podem ser monumentalizadas e tornadas míticas, em vez de simplesmente fazerem proclamações (boas/más) baseadas em valores não interrogados (ou seja, valores da família nuclear, valores de mobilidade ascendente, valores heterossexuais) já presentes. Para ser mais claro, eles substituíram os valores sociais como base da interpretação cinematográfica por códigos semióticos e, ao fazê-lo, tornaram central a questão da ideologia — tal como os Modernistas Políticos Brancos estavam a fazer na esteira de Lacan.

Em “A No-Theory Theory of Contemporary Black Cinema”, Tommy Lott reflete sobre os paradoxos inerentes à própria categoria de “filme negro”. A sua afirmação: os critérios essencialistas pelos quais um filme “Negro” é entendido como sendo dirigido por uma pessoa de ascendência afro-americana permite com demasiada frequência que categorias biológicas substituam as ideológicas. Por outro lado, definições esteticamente fundamentadas do filme negro correm o risco de privilegiar acriticamente as produções independentes. Com este desafio político direto tanto a Yearwood como a Bogle, ele sugere que a noção de Terceiro Cinema poderia ser apropriada para os Negros. (Tal apropriação assemelha-se à forma como os teóricos do cinema brancos desenvolveram o conceito de contra-cinema através das suas traduções dos escritos de Lacan sobre a cura psicanalítica do “discurso completo”). Aqui está a apropriação de Lott do Terceiro Cinema para Negros Americanos — sua resposta à política de identidade de Bogle e Yearwood:

O que torna o Terceiro Cinema um terceiro (ou seja, uma alternativa viável ao cinema ocidental) não é exclusivamente a composição racial de um cineasta, o caráter estético de um filme ou o público-alvo de um filme, mas antes a orientação política de um filme dentro das estruturas hegemônicas do pós-colonialismo. Quando um filme contribui ideologicamente para o avanço dos negros, num contexto de negação sistemática, a concretização deste objetivo político deve contar como um critério de avaliação a par de qualquer critério essencialista (Lott, 1997: 92).

Os teóricos do cinema negro da Segunda Onda, como Snead, Lott, Smith, Diawara e hooks, foram capazes de trazer uma dimensão à teoria do cinema negro que resultou de sua disposição de interrogar não apenas a narrativa em relação aos tropos desgastados pelo tempo da mobilidade ascendente negra, mas também do seu desejo de interrogar o formalismo cinematográfico (isto é, mise-en-scène, acústica, estratégias de edição, iluminação); por outras palavras, o cinema como aparelho/instituição em relação ao estatuto institucional abandonado dos negros. Mas a sua desvantagem foi perceber a negritude como tendo algum estatuto institucional ou como tendo potencial para estatuto institucional. Eles não estavam inclinados a meditar sobre a persistência arcaica de duas qualidades ontológicas fundamentais do legado da escravatura, nomeadamente, a condição de cativeiro absoluto e o estado de virtual não comunicação dentro da cultura oficial. Da mesma forma, considero a recente celebração das superestrelas Halle Berry e Denzel Washington, tanto na imprensa negra como no establishment crítico branco, como sintomática de uma recusa ou incapacidade de aceitar a longa sombra da escravatura, na medida em que escreve uma história do presente. Ou seja, a proclamação do estrelato negro, agora negando a sua relação com estereótipos cinematográficos de longa data, baseia-se numa crença não só na possibilidade de reparação sob a supremacia branca, mas também na sua relativa facilidade. No centro desta crença está uma redução histórica da escravatura à relação de bens móveis e uma formulação de libertação e emancipação negras limitadas às dimensões mais nominais dos direitos e liberdades civis.

Abraçar a agência dos negros como sujeitos da lei (ou seja, sujeitos de direitos e liberdades), e até mesmo o seu potencial para agir como ou como parceiros dos aplicadores da lei (ou seja, Denzel Washington no “Training Day”), apresenta-se como uma atuação do paradoxo histórico da inexistência negra (ou seja, a continuidade mutável da morte social). Aqui, a “conquista” negra na cultura popular e nas artes comerciais exige a separação dessa inexistência, na esperança de contar uma história de perda que seja inteligível dentro da imaginação nacional (Hartman, 2003: 187). A insistência na personalidade negra (em vez de um questionamento radical do terror embutido nessa mesma noção) opera de forma mais pungente nos exemplos discutidos através da problemática codificação de gênero e domesticidade.

Ao perceber o povo negro como estando vivo, ou pelo menos tendo o potencial para viver no mundo, o mesmo potencial que qualquer subalterno poderia ter, a política da metodologia estética e do desejo dos teóricos do cinema negro rejeitou o fato de que:

[Os negros] sempre estão mortos onde quer que você os encontre. O refúgio estimulante da cultura negra que garantiu a memória e proporcionou um lar para além do crescimento arrebatador do capitalismo já não existe. Não pode haver qualquer autenticidade cultural na resistência ao capitalismo. A ilusão de pureza imaterial não é mais possível. Não é mais possível ser negro contra o sistema. Os negros estão mortos, mortos pela sua própria fé em estar voluntariamente além e apesar do poder. (Judy, 1993: 212)

Em suma, um obstáculo perturbador da própria teorização é aquele que a teoria partilha com muitos dos filmes negros que examina: tanto os filmes quanto a teoria tendem a postular uma possibilidade e um desejo pela existência negra, em vez de tomar conhecimento da afirmação ontológica dos chamados afro-pessimistas de que a negritude é tanto aquilo que está fora, que torna possível que brancos e posições não-brancas (isto é, asiáticos e latinos) existam e, simultaneamente, contestem a existência. Como tal, a negritude (slaveness) não apenas está fora do terreno do branco (the master), mas também está fora do terreno do subalterno. Infelizmente, sem exceção, os teóricos do cinema em questão veem-se (isto é, a sua lógica presumida toma como dado) a si próprios como sujeitos dominados, oprimidos, subjugados, reduzidos a um estatuto subalterno, mas mesmo assim sujeitos — num mundo de outros sujeitos.

As suposições de que os acadêmicos negros são subalternos dentro da academia (em vez de escravos de seus “colegas”), de que a escravidão foi um evento histórico há muito terminado, em vez do paradigma contínuo da (não) existência negra, e de que a teoria do cinema negro pode aproveitar a estratégia retórica da comparação é mais proeminente no trabalho dos teóricos do cinema negro da Segunda Onda, que simplesmente não suportam viver no impasse de ser um objeto e, então, voltam-se para articulações hipercoerentes do Terceiro Cinema, a fim de propor uma política para a interpretação cinematográfica. Lott, por exemplo, provoca um curto-circuito no que de outra forma poderia ser uma intervenção profundamente iconoclasta, ou seja, o Terceiro Mundo pode lutar contra a dominação e pela devolução das suas terras como pessoas com uma narrativa de reparação, enquanto os escravos só podem lutar contra a escravatura — o que só pode ser teorizado, se é que pode ser, no processo e no final da violência necessária contra o mestre (Fanon, 1963: 35–45). Apesar de ter se aventurado no primeiro movimento infeliz — a necessidade de se comunicar com outros grupos de pessoas através da afirmação e da ansiedade sobre a coerência negra — , o trabalho de Lott faz intervenções brilhantes. Estou dizendo, no entanto, que o impulso em direção à apresentação de um cânone do cinema negro não apenas mostra um desejo de participar da institucionalidade do cinema, mas o próprio trabalho mostra um desejo de participar da institucionalidade da academia. E a “participação” é um registo indisponível aos escravos. A teoria do cinema negro, como intervenção, teria um impacto mais destrutivo se colocasse em primeiro plano a impossibilidade de um filme negro, a impossibilidade de uma teoria do cinema negro, a impossibilidade de um teórico do cinema negro e a impossibilidade de uma pessoa negra exceto, e isto é fundamental, sob condições de violência “purificadoras” (Idem). Uma vez que a violência real é associada à “monstruosidade” representacional (noção de Spillers de uma aceitação negra da vulnerabilidade absoluta, 2003: 229), então, e só então, existe uma possibilidade para os negros passarem do estatuto de coisas para o estatuto de…de o quê, teremos apenas que esperar para ver.

Ao pensar o espectador negro como explorado e não como acumulado, a Segunda Onda de teóricos do cinema negro não conseguiu perceber que os escravos não são subalternos, porque os subalternos são dominados, na primeira instância ontológica, pelas maquinações da hegemonia (da qual o cinema é uma máquina vital) e depois, após alguma transgressão simbólica, ou seja, na segunda instância, pela violência. A negritude é constituída pela violência em primeira instância ontológica. Esta, lembra-nos Hortense Spillers, é a essência do ser negro: “ser para o captor” (Spillers, 1987) — a própria antítese da expressão cultural ou da agência performativa.

Corretivo de Lacan

Qual é o arranjo essencial da condição de não-liberdade do sujeito? Todo teórico do cinema parece ter uma resposta (declarada ou implícita) para esta questão. Embora percebam que o campo destas “respostas” é muito variado (o que é ao nível do conteúdo), poderíamos dizer que a estrutura da condição de não-liberdade do sujeito é imaginada ao longo de um ou dois vectores partilhados: o da despossessão e da estagnação na economia política (Marx, 1976) e a desapropriação e a estagnação na economia libidinal (Lacan, 1977) — por vezes uma combinação das mesmas, mas raramente ambas têm o mesmo peso. Este é o reforço da estrutura conceitual dos estudos cinematográficos; e eu não ficaria surpreso se o mesmo acontecesse com outras teorizações que buscam (a) teorizar a desapropriação e (b) teorizar práticas culturais específicas (isto é, contra-cinema ou arte performática) como modos de acompanhamento para a reparação da referida desapropriação.

O restante deste capítulo questiona a eficácia dos gestos estéticos no seu papel como acompanhamento de noções de emancipação dentro da economia libidinal (em oposição à ênfase Gramsciana na economia política). Esta é uma interrogação de alto risco porque grande parte da teoria do cinema (teoria do cinema branco ou não-negro-humano) está a cargo de Lacan e da sua tese subjacente sobre a subjetividade e a libertação psíquica. Não procura refutar a teoria subjacente de Lacan sobre como o sujeito entra na subjetividade através da alienação dentro do Imaginário e do Simbólico; nem procura refutar a sua compreensão da estagnação psíquica (descrita como monumentalização egóica) como aquela condição da qual o sujeito (e, por extensão, o socius) deve ser libertado. Em vez de tentar refutar as evidências e a lógica presumida de Lacan (e, por extensão, da teoria do cinema não-negro), procuro mostrar como, ao aspirar a uma explicação paradigmática das relações, sua lógica presumida mistifica, em vez de esclarecer, uma explicação paradigmática das relações, pois tem um relato vívido dos conflitos entre os gêneros, ou, mais amplamente, entre contemporâneos narcisistas e contemporâneos que aprenderam a viver em uma relação desconstrutiva com o ego — oferece uma caixa de ferramentas confiável para examinar rigorosamente os conflitos intra-humanos (e para propor os gestos estéticos, ou seja, tipos de práticas cinematográficas, que exacerbam [filmes de Hollywood] ou corrigem [contra-cinema] esses conflitos), mas não tem capacidade de dar uma explicação paradigmática da estrutura dos antagonismos entre negros e Humanos. Argumento que as afirmações e conclusões que a psicanálise lacaniana (e, por extensão, a teoria do cinema não-negro) faz em relação à despossessão e ao sofrimento são (a) insuficientes para a tarefa de delinear a despossessão e o sofrimento negros, e (b) parasitárias dessa mesma despossessão e sofrimento negros para os quais não tem palavras.

Em “A função e o campo da fala e da linguagem na psicanálise”, Lacan (1977) ilustra o que permanece até hoje um dos cenários mais brilhantes e abrangentes para alcançar o que alguns acreditam ser o único pedaço de liberdade que jamais conheceremos (Silverman, 2000). O valor de Lacan para a psicanálise em particular e para a teoria crítica em geral foi que ele eliminou o medo e a aversão à palavra “alienação”. A alienação, para Lacan, é o que literalmente torna a subjetividade possível. Ao contrário de Brecht, que via a alienação (alguns preferem o “distanciamento”) como o efeito ideológico da falsa consciência, Lacan via a alienação como o contexto necessário, a rede que torna possíveis as relações humanas e divide o mundo entre aqueles com sociabilidade (sujeitos) e aqueles sem sociabilidade (infans — crianças, digamos, antes dos dezoito meses de idade). Mas na grade da sociabilidade, contudo, é possível imaginar que exista uma relação com a significação, como se as palavras fossem janelas para o mundo — ou, pior ainda, para as próprias coisas que elas significam. Estes são, claro, os atos de fala através dos quais o sujeito monumentaliza a sua presença em desmentido da própria perda de presença (falta) que a alienação lhe impôs em troca de um mundo com outros. Este é o significado de “discurso vazio”,

…que Lacan define consistentemente em oposição ao discurso pleno. [A fala vazia] baseia-se na crença de que podemos estar espacial e temporalmente presentes para nós mesmos, e que a linguagem é uma ferramenta para efetuar esse autodomínio. Mas em vez de levar à auto-possessão, o discurso vazio é o agente de uma “despossessão sempre crescente”. Quando falamos um discurso vazio, nos elevamos para fora do tempo e nos congelamos em um objeto ou “estátua” (Ibid. 43). Desfazemo-nos assim como sujeitos. (Silverman, 2000: 65–66)

Silverman prossegue explicando a “recusa da simbolização no discurso vazio em um segundo sentido [como] o que o analisando literal ou metaforicamente pronuncia quando responde às formas figurais através das quais o passado retorna como se seu valor e significado fossem imanentes a elas” (idem:66). Em suma, o analisando colapsa o significante com aquilo que é significado e, ao fazê-lo, procura “‘entificar’ ou ‘preencher’ o significante — para torná-lo idêntico a si mesmo” (idem: 66). Esta entificação (ou monumentalização) é a recusa do sujeito em se render à temporalidade, “o fato de que todo evento psiquicamente importante depende, para seu valor e significado, da referência a um evento anterior ou posterior. O analisando também não consegue perceber que, com suas escolhas objetais e outros atos libidinais, ele está falando uma linguagem de desejo. Discurso vazio é o que o analisando pronuncia classicamente durante os primeiros estágios da análise” (idem: 66).

Mas assim como a linguagem, na grade da alienação, pode ser assumida como o método através do qual os significantes são entificados e os egos são monumentalizados, de modo que o sujeito é “protegido” do facto da alienação, também a linguagem pode ser aquela agência através da qual o sujeito aprende a conviver numa relação desconstrutiva com essa alienação, aprende a conviver com a falta. Em vez de monumentalizar a imagem de um eu presente e unificado, o sujeito pode aprender a compreender a relação simbólica que o/a posicionou.

Idealmente, os estágios posteriores da análise levam o assunto ao discurso completo. O analisando se engaja na fala plena quando entende que suas palavras literais e metafóricas são de fato significantes — nem equivalentes a coisas, nem capazes de dizer “o que” elas são, mas sim uma retroação a uma antecipação de outros significantes. A fala plena é também a fala em que o analisando reconhece, dentro do que ele anteriormente considerou ser o “aqui e agora”, as operações de um sistema de significação muito pessoal — isto é, as operações do que Lacan chama de sua “linguagem primária”. (idem: 66)

Como descrição do sofrimento e prescrição para a emancipação do sofrimento, a noção lacaniana de discurso pleno foi um freio no que, na década de 1950, estava se tornando a ladeira escorregadia da psicanálise em direção ao idealismo e ao essencialismo. Lacan citou três problemas básicos da psicanálise da década de 1950: as relações objetais[i], o papel da contratransferência e o lugar da fantasia (Schweninger , 1993: 32–33). Em todos eles, ele notou “a tentação do analista de abandonar o fundamento do discurso, e isso precisamente em áreas onde, por beirarem o inefável, seu uso pareceria exigir um exame mais atento do que o habitual” (Lacan, 1977: 36).

O “muro da linguagem” é um muro que, para Lacan, não pode ser penetrado pelo analisando exceto em seu estado a-subjetivo, isto é, seja como infans (aquele estado de ser anterior à alienação no Simbólico) ou como um cadáver (aquele estado de ser após a alienação — Morte). Dentro do contexto analítico, não há nada significativo do outro lado da linguagem. “Além deste muro, não há nada para nós além da escuridão exterior. Isso significa que somos inteiramente donos da situação? Certamente não, e neste ponto Freud nos legou seu testamento sobre a reação terapêutica negativa” (Idem: 101). O analisando descarta sua relação projetada e imaginária com o analista e passa a compreender onde ele está finalmente em relação ao analista (que está fora de si mesmo) e a partir do lugar do analista (um substituto para a Ordem Simbólica); ele passa a ouvir sua própria língua e se torna um auditor em relação à sua própria fala. “A análise consiste em levá-lo a tomar consciência de suas relações, não com o ego do analista, mas com todos esses Outros que são seus verdadeiros interlocutores, que ele não reconheceu.” Todos estes Outros não são outros senão os contemporâneos lacanianos ou, no vernáculo mais saliente para o escravo, os Brancos e os seus parceiros juniores na sociedade civil — Humanos posicionados pela Ordem Simbólica. “Trata-se do sujeito descobrir progressivamente a que Outro se dirige verdadeiramente, sem o saber, e de assumir progressivamente as relações de transferência no lugar onde está, e onde a princípio não sabia que estava” (Lacan, 1977: 246). Novamente, não há localização da subjetividade dentro de si mesmo. Lacan é claro: não se pode ter relação consigo mesmo. Em vez disso, a pessoa passa a compreender a sua existência, o seu lugar fora de si mesmo, e é ao compreender o seu lugar fora de si mesmo que pode ouvir-se e assumir o seu discurso — por outras palavras, assumir o seu desejo.

Finalmente, Lacan ficou alarmado com a forma como a psicanálise estava se tornando cada vez mais preocupada em explorar as fantasias do analisando — uma prática que, novamente, subordinava a exploração do Simbólico à exploração do Imaginário (Lee, 1993: 33–34). A relação Imaginária coloca o analisando numa relação identificatória com o outro, seja esse outro a sua própria imagem, uma representação externa ou um outro externo. Essa relação é aquela em que o analisando permite que o outro tenha apenas uma fração da “alteridade”: o analisando mal consegue apreender a alteridade do outro, porque a psique diz: “esse sou eu”. Mas este é o pior tipo de estratagema e induz sentimentos de desordem e insuficiência, colocando o analisando numa relação agressiva de rivalidade com o outro, pois este outro (imaginário) ocupa o lugar que o analisando deseja ocupar. Através de tais processos, a análise intensifica, em vez de diminuir, o narcisismo do analisando.

Dado que tantos psicanalistas na Inglaterra e na América exaltaram as virtudes de um encontro analisando/analista, que culminou em um ego encorajado que fortificou o monumento de uma psique fortalecida, capaz, como essas afirmações dizem, de se preparar contra os próprios ataques que havia produziu sua frustração paralisante; e dada a estrutura retórica do bom senso e, ao que parecia, a “evidência” empírica de analisandos curados, o que tornou Lacan tão firme em sua convicção do contrário?

Este ego, cuja força os nossos teóricos definem agora pela sua capacidade de suportar a frustração, é a frustração na sua essência. Não a frustração de um desejo do sujeito, mas a frustração de um objeto no qual seu desejo é alienado e que quanto mais é elaborado, mais profunda se torna para o sujeito a alienação de seu gozo (Lacan, 1977: 42) [Pois] identificar o ego com a disciplina do sujeito é confundir o isolamento imaginário com o domínio dos instintos. Isto abre espaço para erros de julgamento na condução do tratamento: como tentar reforçar o ego em muitas neuroses causadas pela sua estrutura excessivamente vigorosa — e isso é um beco sem saída. (idem: 106)

O processo de fala plena, então, é um processo que catalisa a desordem e a desconstrução, em vez da ordem e da unidade, “a construção monumental do narcisismo [do analisando]” (idem: 40). À prática da Ego Psychology de fortalecer o ego em um esforço para acabar com a frustração da neurose, Lacan propôs um encontro analítico revolucionário no qual o analisando se torna:

empenhado num despojamento cada vez maior daquele seu ser, a respeito do qual — à força de retratos sinceros que deixam a sua ideia não menos incoerente, de retificações que não conseguem libertar a sua essência, de apoios e defesas que não impedem a sua estátua de cambalear, de abraços narcísicos que se tornam como um sopro de ar ao animá-la — ele acaba por reconhecer que esse ser nunca foi nada além de sua construção no imaginário e que essa construção decepciona todas as certezas… Pois neste trabalho que ele empreende ao reconstruir para outro, ele redescobre a alienação fundamental [grifo meu] que o fez construí-lo como outro, e que sempre o destinou [o ego] a ser tirado dele por outro. (idem: 42)

Esta noção de “trabalho” que o analisando “empreende a reconstruir para outro” e assim redescobre “a alienação fundamental que o fez construí-lo como outro, e que sempre destinou [o ego] a ser tirado dele por outro” nos devolve à espinhosa questão dos “contemporâneos”. Agora devemos abordá-la, não num contexto de sujeitos universais e sem raça (brancos), nem num contexto culturalmente modificado de identidades específicas (brancos “escuros” e não-negros), mas sim num contexto de polaridade posicional que estrutura a sociedade civil e a sua região inferior — nomeadamente, a polaridade entre Humanos e Negros, o contexto de senhores e escravos.

O esquema analítico da descoberta de Jacques Lacan conhecido como “fala plena” postula um sujeito cujo sofrimento é produzido pela alienação na imagem do outro, ou pela captação no Imaginário, e cuja liberdade deve ser produzida pela alienação na linguagem do outro, ou interpelação dentro do Simbólico. O sujeito só se constitui como sujeito propriamente dito através de uma relação com o outro. Para Lacan, a alienação, seja no Imaginário ou no Simbólico, é a modalidade produtiva da subjetividade para todos os seres sencientes. Em outras palavras, a subjetividade é um processo discursivo ou significativo de devir.

O transtorno psíquico, por meio da pulsão de morte, é aquele mecanismo na análise lacaniana que leva o analisando à compreensão de si mesmo como um vazio. Para Lacan, os problemas da fala e da pulsão de morte estão relacionados; a relação apresenta a ironia “de dois termos contrários: o instinto na sua acepção mais abrangente é a lei que rege na sua sucessão um ciclo de comportamento cujo objetivo é o cumprimento de uma função vital; e a morte aparecendo antes de tudo como a destruição da vida” (Lacan, 1977: 101). Mas Lacan deixa claro que, embora a morte esteja implícita, é a vida através da linguagem que é o objetivo da análise. (Isso também tem grande influência sobre o que, argumento abaixo, é a pobreza da promessa política ou emancipatória do discurso pleno.) Somente ao ser alienado dentro do Grande “A”, da linguagem, ou da Ordem Simbólica, o moi, pequeno a ou ego, passa a ser o je, o sujeito da falta, o sujeito de um vazio. Antes do analisando realizar a fala completa, ele projeta no analista todos os fantasmas que constituem o seu ego. O processo emancipatório do encontro psicanalítico de Lacan é aquele em que o analisando passa da posição do analista como o pequeno a, para outro em que o analista ocupa, para o analisando, a posição do Grande “A”, uma posição sinônima da própria linguagem. Para Lacan, esses dois movimentos se complementam. Vale a pena repetir que esta intersubjetividade, alienação no outro, existe quer o sujeito a apreenda ou não, quer seja ou não sujeito de discurso pleno ou de discurso vazio. Mas ainda nos resta a alienação como modalidade estruturante da subjetividade. Quer, a título de descrição, postulemos o analisando como alienado no Imaginário (ego, “a” minúsculo) ou como alienado no Simbólico (linguagem como estrutura, como inconsciente do Outro) — ou mesmo se, além disso, reconhecemos o fato de que a fala plena como prescrição exige alienação dentro do Simbólico — permanecemos com o fato de que, no que diz respeito ao devir, a alienação é a modalidade essencial de existência da subjetividade. A alienação é, para Lacan, uma gramática essencial da ontologia política.

Como afirmei acima, não estou argumentando que o inconsciente não existe. Nem estou afirmando que os seres sencientes, sejam humanos ou negros, não estejam de fato alienados no Imaginário e no Simbólico. Estou argumentando que, embora a alienação seja uma gramática essencial que sustenta a relacionalidade humana, é uma gramática importante, mas, em última análise, não essencial quando se tenta pensar a interdição estrutural contra o reconhecimento e a incorporação negra[ii]. Em outras palavras, a alienação é uma gramática que sustenta todo tipo de relacionalidade, seja ela narcisista (fala egóica, vazia) ou liberada (fala plena). Mas não é uma gramática que subscreve, muito menos explica, a ausência de relacionalidade.

Fanon e o discurso completo

Jacques Lacan e Frantz Fanon lutaram com a questão: o que significa ser livre? e seu corolário: o que significa sofrer? no mesmo momento da história. Dizer que ambos apareceram ao mesmo tempo é dizer que ambos têm, como condição intelectual de possibilidade, a ocupação brutal da Argélia pela França. Não é minha intenção insistir na falta de ativismo político de Lacan ou divulgar o histórico de guerra revolucionária de Fanon. Minha intenção é interrogar a amplitude da universalidade descritiva do discurso pleno e a profundidade de sua cura prescritiva — interrogar seu fundamento encenando um encontro entre, por um lado, Lacan e seus interlocutores e, por outro lado, Fanon e seus interlocutores. Só para este fim, observo a relação dos dois homens com o colonialismo francês, tal como a força dessa relação é sentida nos seus textos.

[i] A ênfase de Melanie Klein num progresso normativo das escolhas objetais libidinais contrariava uma ênfase no discurso do analisando, uma ênfase que Lacan acreditava que deveria orientar o curso da análise. Ele censurou Klein pela promoção de uma cura psicanalítica que centralizava a “interação da realidade e da fantasia na escolha dos objetos sexuais pelo sujeito”, também conhecida como teoria das relações objetais. Em segundo lugar, estava sendo dada nova atenção ao papel da contratransferência no encontro psicanalítico e, portanto, à importância, no treinamento, de lidar com suas manifestações típicas. Através do que Lacan considerou ser uma segunda “virada errada” teórica, o ego (ou imaginário) do analista corria o risco de se enredar com o ego (ou imaginário) do analisando, conduzindo o encontro psicanalítico através de uma perpétua sala de espelhos — reflexões vazias ou egóicas falando com reflexões igualmente vazias e egóicas, um processo que poderia fortalecer e prolongar a vida interlocutória do que Lacan chamou de “discurso vazio”. É por isso que, “ao longo do curso da análise, com a única condição de que o ego do analista concorde em não estar ali, com a única condição de que o analista não seja um espelho vivo, mas um espelho vazio, o que acontece entre o ego do sujeito. . . e os outros” (Lacan, 1991: 246). “Os outros” são o que Lacan chama de “contemporâneos” do analisando (Lacan, 1977: 47). Para Lacan, o encontro analítico deve levar o analisando a um lugar onde ele seja capaz de ver o que está depositando no lugar do analista. Se o ego do analista estiver presente, se o analista não for um espelho vazio, então os analisandos não compreenderão onde estão em relação ao analista. O lugar do analista não se tornará o que, para Lacan, deveria se tornar, o Outro simbólico através do qual os analisandos podem ouvir sua própria linguagem. Para que isso aconteça, o analista deve tornar-se um sujeito “sem cabeça” ou acefálico; um sujeito que nada mais espelha do que um vazio. Dessa forma, e somente dessa forma, os analisandos passarão a compreender a si mesmos como um vazio tapado pela linguagem.

Figura 3: Frantz Fanon

A descrição psicanalítica de Frantz Fanon da neurose negra, “branqueamento alucinatório”, e suas prescrições para uma cura, “descolonização” e “o fim do mundo” (Fanon, 1967: 96) ressoam com as categorias de discurso vazio e discurso pleno de Lacan. Há uma rejeição monumental do vazio envolvido no branqueamento alucinatório, e a desordem e a morte certamente caracterizam a descolonização. Para Fanon, o trauma da negritude reside na sua alteridade absoluta em relação aos brancos. Ou seja, os brancos “fazem” os negros apenas ao reconhecer a cor de sua pele. O paciente negro de Fanon está “oprimido… pelo desejo de ser branco” (idem: 100). Mas, ao contrário do diagnóstico do analisando feito por Lacan, Fanon faz uma ligação direta e autoconsciente entre o branqueamento alucinatório do seu paciente e a estabilidade da sociedade branca. Se os textos de Fanon oscilam violenta e imprevisivelmente entre o corpo do sujeito e o corpo do socius, é porque Fanon entende que “fora de [seu] consultório psicanalítico, [ele deve] incorporar [suas] conclusões ao contexto do mundo”. A sala é pequena demais para conter o encontro. “Como psicanalista, eu deveria ajudar meu paciente a tomar consciência de seu inconsciente e a abandonar suas tentativas de branqueamento alucinatório…” Aqui temos um desmantelamento de todos os fantasmas que constituem o ego do paciente e que ele projeta no analista que ressoa com o processo de alcançar o que Lacan chama de discurso pleno. Mas Fanon vai um passo além, pois não apenas deseja que o analisando se renda ao vazio da linguagem, mas também que “aja na direção de uma mudança… no que diz respeito à fonte real do conflito — isto é, em direção a uma mudança” das estruturas sociais” (idem: 100).

Como psicanalista, Fanon não contesta a afirmação de Lacan de que o sofrimento e a liberdade são produzidos e alcançados, respectivamente, no domínio do Simbólico; mas isto, para Fanon, é apenas metade da modalidade de existência. A outra metade do sofrimento e da liberdade é a violência. No momento em que Fanon entrelaçou a descrição da condição do seu paciente (ou seja, a sua própria vida como médico negro em França) na prescrição de uma cura (o seu compromisso com a luta armada na Argélia), ele alargou a lógica da desordem e da morte do Simbólico ao Real.

A descolonização, que se propõe a mudar a ordem do mundo, é, obviamente, um programa de completa desordem…[É]o encontro de duas forças, opostas pela sua própria natureza…O seu primeiro encontro foi marcado pela violência e a sua existência conjunta…foi levada a cabo à força de uma grande variedade de baionetas e canhões…[E]este mundo estreito, repleto de proibições, só pode ser posto em causa pela violência absoluta. (Fanon, 1963: 36–37)

Isto ocorre porque a violência estrutural, ou absoluta, ou o que Loic Wacquant chama de “continuum carcerário”, não é uma experiência negra, mas uma condição da “vida” negra. Permanece constante, paradigmaticamente, apesar das mudanças no seu “performance” ao longo do tempo — navio negreiro, Passagem Média, propriedade escravista, Jim Crow, o gueto, o complexo industrial prisional. Existe uma estranha ligação entre a violência absoluta de Fanon e o Real de Lacan. Assim, por extensão, a própria gramática do sofrimento do Negro está no nível do Real. Nesta passagem emblemática, Fanon faz pela violência o que Lacan faz pela alienação: nomeadamente, ele remove o estigma negativo que tal termo incorreria nas mãos de teóricos e profissionais que procuram coerência e estabilidade. Ele também levanta no esquema de sofrimento e liberdade de Lacan uma contradição entre a ideia de contemporâneos universais sem raça e duas forças opostas, cujo primeiro encontro e existência conjunta é marcada pela violência. Em suma, ele divide o mundo não entre contemporâneos curados e contemporâneos não curados, mas entre contemporâneos de todos os tipos e escravos. Ele estabelece as bases para uma teoria do antagonismo além e acima de uma teoria do conflito.

Se o discurso integral de Lacan não é, em essência, uma “cura”, mas um processo promotor de desordem psíquica, através do qual o sujeito passa a conhecer a si mesmo, não como uma relação estável com um verdadeiro “eu” — o Imaginário — mas como um vazio constituído apenas pela linguagem, um devir em direção à morte em relação ao Outro — o Simbólico — então veremos como esse autocancelamento simbólico (Silverman, 2000: 63–65,126–128) só é possível quando o sujeito e “seus contemporâneos” (Lacan, 1977: 47) são Brancos ou Humanos. O processo de fala plena repousa em uma tremenda negação que re-monumentaliza o ego (Branco) porque sutura, em vez de cancelar, a estagnação formal, fortalecendo e ampliando a vida interlocutória das discussões intra-humanas.

Estou argumentando que (1) a sociedade civil, o terreno sobre o qual o analisando realiza o discurso completo, é sempre um monumento formalmente estagnado; e (2) o processo pelo qual o discurso completo é realizado intermedia simultaneamente duas relações para o analisando, uma nova e uma antiga, respectivamente. O processo pelo qual o discurso completo é realizado intermedia uma (nova) relação desconstrutiva entre o analisando e a sua estagnação formal dentro da sociedade civil e uma relação (pré-existente ou) reconstrutiva entre o analisando e a estagnação formal que constitui a sociedade civil.

Embora Lacan estivesse ciente de como a linguagem “nos precede e nos excede” (Silverman, 2000: 157), ele não tinha a consciência de Fanon de como a violência também precede e excede os negros. A consciência disto teria perturbado a coerência da taxonomia implícita no pronome pessoal “nós”. A trajetória do discurso completo de Lacan, portanto, só é capaz de dar sentido à violência como fenômenos contingentes, efeitos de “transgressões” (atos de rebelião ou recusa) dentro de uma Ordem Simbólica. Aqui, a violência, pelo menos no primeiro caso, não é sem sentido (gratuita) nem é uma matriz de (im)possibilidade humana: é o que acontece depois que ocorre alguma forma de violação no domínio da significação. Ou seja, é contingente.

Implícitas nesse gesto em direção à trajetória de Lacan sobre a violência estão diversas questões relativas ao discurso pleno. Em primeiro lugar, pode o discurso completo lacaniano, tão apegado como está à noção de que não há mundo a ser apreendido para além do domínio da significação, teorizar adequadamente os corpos que emergem de relações diretas de força? O que significa perguntar: é a lógica do discurso completo demasiadamente imbricado na institucionalidade da antinegritude para ser descritiva ou prescritivamente adequado para pensar a posicionalidade negra? Ao tentar ler o sofrimento humano e os seus efeitos (o que Lacan chama de discurso vazio), bem como a liberdade humana e os seus efeitos (o que ele chama de discurso pleno), através da figura de uma posição “blackened”, pode-se simplesmente assumir que, apesar das relações de pura força que distinguem um “esquema epidérmico” (Fanon, 1967: 112) de outro, as relações de significação têm o poder de lançar teias de analogia entre posições tão díspares, teias de analogia fortes o suficiente para circunscrever relações de pura força, de modo que todos os seres sencientes possam ser vistos como “contemporâneos” uns dos outros? Dito de outra forma: o discurso completo para o senhor é o discurso completo para o escravo? O que significaria para um mestre viver numa relação desconstrutiva com o seu moi? Será o “mestre libertado” um oxímoro ou, pior ainda, simplesmente redundante? Através de que agência (volição? vontade?) um escravo entifica o significante? O que significa perguntar: pode existir um escravo narcisista? Ou o que é a fala completa para um escravo? Lacan parece tomar como certa a relevância universal de (1) o encontro analítico, (2) a centralidade da significação e (3) a possibilidade de “contemporâneos”. Mas poderá uma posição enegrecida assumir estas coordenadas com apenas algumas modificações culturalmente específicas, ou enegrecer estas coordenadas é precipitar crises em grande escala?

Afirmo que a teia de analogia lançada entre o sujeito da análise e seus “contemporâneos”, no processo de discurso pleno, é dilacerada pela inserção da posição negra, que é menos um local de subjetivação e mais um local de dessubjetificação — uma “espécie” de “abandono absoluto” (Fanon, 1967), um híbrido de “pessoa e propriedade” (Hartman, 1997) e um corpo que magnetiza balas (Martinot & Sexton, 2003). Pretendo ampliar (para o socius) as implicações do discurso completo lacaniano para ilustrar o seu lugar como uma estratégia que fortalece e prolonga a vida interlocutória da sociedade civil, e reduzir (para o corpo) as implicações da descolonização fanoniana para ilustrar a incomensurabilidade entre a carne negra e o corpo do analisando. O discurso pleno é uma estratégia de desordem psíquica, dentro dos limites humanos, e a descolonização é uma estratégia de desordem completa, sem quaisquer limites[i]. As implicações deste dilema são extremamente elevadas, pois sugere que o discurso pleno lacaniano — tal como a Teoria do Cinema, que está sobre os seus ombros — é cúmplice da estabilidade social, apesar de afirmar o contrário.

No cerne desta crítica está (a) a lacuna intransponível entre a postura ética do discurso pleno lacaniano e a postura ética da descolonização fanoniana — em outras palavras, o método pelo qual o discurso pleno lacaniano intensifica a rejeição de uma matriz estruturadora da violência — e ( b) a questão dos “contemporâneos” do analisando, cuja linguagem, segundo Lacan, o analisando fala quando despedaça os monumentos da “estagnação formal” do ego. Até que ponto o analisando pode tornar-se contemporâneo do escravo, à medida que este procura destruir a sociedade civil? A que apelo às armas o analisando seria obrigado a responder?

Qual é a base sobre a qual o analisando é capaz de realizar o trabalho desconstrutivo do discurso pleno? Minha afirmação é que antes, e contemporaneamente, ao encontro analítico, o corpo negro “trabalha” como um híbrido escravizado de pessoa e propriedade (2003) para que o analisando possa “trabalhar” como um sujeito liberado. Além disso, é a matriz da violência que divide os escravizados dos não escravizados, assim como a matriz da alienação separa o infans do sujeito: a violência zoneia o Negro, enquanto a alienação zoneia o Humano. Mas enquanto o “devir em direção à morte”, que resulta do encontro analítico lacaniano, permite ao analisando desconstruir sua presença monumentalizada diante da alienação e de uma vida encoberta pela linguagem, a análise também permite que o analisando tome como certo (ser alheio) à matriz de violência que zoneou o seu terreno de “confiança generalizada” (Barrett, 1999), esse terreno, eufemisticamente referido como sociedade “civil”. A “confiança generalizada” (branquitude racializada), juntamente com a estabilidade relativa, são as pré-condições para o encontro analítico, ou qualquer outro encontro “civil”. Fanon deixa claro como alguns estão zoneados, a priori, além das fronteiras da confiança generalizada:

Este mundo dividido em compartimentos, este mundo dividido em dois é habitado por duas espécies diferentes… Quando se examina de perto o contexto colonial, fica evidente que o que parcela o mundo é, a começar o fato de pertencer a uma determinada raça, uma determinada espécie [grifo meu]. Nas colônias a infraestrutra econômica é também uma superestrutura. A causa é a consequência; você é rico porque é branco, você é branco porque é rico. (Fanon, 1963: 39–40)

Quando digo que o analisando pode tomar como certa a matriz de violência que zoneou seu terreno de “confiança generalizada”, quero dizer que, a menos que o mundo seja parcelado — a menos que haja duas espécies — ele/ela não pode iniciar o trabalho de vir a ser em direção a morte — nem Lacan poderia ter teorizado esse trabalho. Em suma, a violência — a divisão de “espécies”, o zoneamento, dos escravizados e dos não escravizados — é a condição de possibilidade sobre a qual a subjetividade (paradigma do discurso vazio e completo: a dialética Imaginário vs. Simbólico) pode ser teorizada (isto é, a escrita dos Escritos) e realizado (o encontro analítico). Mas esta teorização e performance, ao ignorar a sua relação com o zoneamento de espécies que “trabalha” pela sua condição de possibilidade, desconstrói os monumentos do ego do analisando, ao mesmo tempo que fortalece e amplia as muralhas da sociedade civil que circunscreviam esses monumentos. Em suma, a trajetória da desordem em direção ao discurso pleno desconstrói aquilo que proíbe as relações entre o analisando e seus “contemporâneos”, ao mesmo tempo que entifica e unifica aquilo que proíbe as relações entre espécies (entre senhores e escravos). Apesar das intervenções radicais de Lacan contra as limitações práticas das relações objetais e as armadilhas ideológicas da psicologia do ego, o processo de discurso pleno é, no entanto, fundamental para a integração vertical da anti-negritude.

Eu disse acima que queria ampliar as implicações do discurso completo lacaniano para ilustrar o seu lugar como uma estratégia que fortalece e amplia a vida interlocutória da sociedade civil, e reduzir as implicações da descolonização fanoniana ao nível do corpo para ilustrar a incomensurabilidade entre a carne negra e o corpo do analisando — como essas duas posições se subentendem, como um plano em relação a um ângulo, constroem mutuamente seu contexto triangular. Antes de desvendar, ao nível do corpo, o que esta relação torna (im)possível, sou obrigado a alargar a cartografia deste encontro tão íntimo, isto é, a aumentar a escala do corpo para o socius — onde a sociedade civil subtende sua região inferior.

A Sociedade Civil e seus descontentes

Como observado acima, antes que o rancor e as réplicas “saudáveis” que representam a pedra angular da sociedade civil (seja na sala de reuniões, na cabine de votação, no quarto ou no divã do analista) possam começar, a sociedade civil deve estar relativamente estável. Mas como é que esta estabilidade pode ser alcançada e para quem? Para os negros, a estabilidade cívica é um estado de emergência. Frantz Fanon (1963) e Martinot & Sexton (2003) explicam porque a estabilidade da sociedade civil é um estado de emergência para os negros. Fanon escreve sobre zonas. Para nossos propósitos, queremos ter em mente o seguinte: a zona do Humano (ou não-Negro — apesar do fato de Fanon ser um pouco frouxo e liberal com sua linguagem quando a chama de zona do [nativo pós-colonial]) tem “regras” dentro da zona que permitem a existência da interação humanista — ou seja, o encontro psicanalítico de Lacan e/ou a luta proletária de Gramsci. Isto decorre dos diferentes paradigmas de zoneamento mencionados anteriormente em termos de zonas Negras (sem interação Humanista) e zonas Brancas (a quintessência da interação Humanista).

A zona onde vive o nativo não é complementar à zona habitada pelo colono. As duas zonas são opostas, mas não a serviço de uma unidade superior. Obedientes às regras da pura lógica aristotélica, ambos seguem o princípio da exclusividade recíproca. Nenhuma conciliação é possível, pois dos dois termos um é supérfluo… A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. (Fanon, 1963: 38–39)

Esta é a base da sua afirmação de que duas zonas produzem duas “espécies” diferentes. A frase “não está a serviço de uma unidade superior” descarta qualquer tipo de otimismo dialético para uma síntese futura. O contexto específico de Fanon não partilha o mesmo contexto histórico ou nacional de Martinot & Sexton, mas a dinâmica colonizador/nativo, o zoneamento diferencial e a gratuidade (em oposição à contingência) da violência que resultam da posição enegrecida, são partilhados pelos dois textos.

Martinot & Sexton afirmam a primazia das zonas maniqueístas de Fanon (sem a promessa de uma unidade superior), mesmo quando confrontados com a facticidade da integração americana:

A dicotomia entre a ética branca [o discurso da sociedade civil] e a sua irrelevância para a violência da caracterização policial não é dialética; os dois são incomensuráveis sempre que se tenta falar sobre o paradigma do policiamento, somos forçados a voltar à discussão de eventos específicos — homicídios de alto perfil e suas batalhas judiciais relacionadas, por exemplo [ênfase minha]. (Martinot & Sexton, 2003: 6)

Não faz diferença que nos EUA a “casbah” e a zona “europeia” sejam colocadas uma sobre a outra, porque o que está se afirmando aqui é a intercambialidade esquemática entre a sociedade de colonos de Fanon e o paradigma de policiamento de Sexton e Martinot. (Os brancos na América estão agora tão estabelecidos que já não se autodenominam colonos.)

Para Fanon, são o policial e o soldado (não os agentes discursivos ou hegemônicos) do colonialismo que tornam uma cidade branca e a outra negra. Para Martinot & Sexton, este delírio maniqueísta manifesta-se através do paradigma norte-americano de policiamento que (re)produz, repetidamente, o dentro/fora, a sociedade civil/vazio negro, em virtude da diferença entre aqueles corpos que não magnetizam balas e os corpos que o fazem. “A impunidade policial serve para distinguir entre o próprio racial e o outro lugar que o impõe… a distinção entre aqueles cujo humanidade é permanentemente posto em causa e aqueles para quem isso é evidente” (Martinot & Sexton, 2003: 8). Os brancos são, ipso facto, substituídos pelos negros, quer saibam disso (conscientemente) ou não.

Até a recente redução gradual dos linchamentos semanais na década de 1960, os brancos eram convocados individualmente para realizar essa delegação[ii]. A tese de doutorado de 1914 de H. M. Henry (um estudioso de forma alguma hostil à escravidão), “The Police Control of the Slave in South Carolina”, revela quão vital esse desempenho foi na construção da branquidade para os colonos dos anos 1600, 1700 e 1800, bem como para o estudioso colonizador (o próprio Henry) dos anos 1900:

A evolução do sistema de patrulha é interessante. A necessidade de evitar que os escravos vagueassem foi sentida desde o início. Entre os primeiros atos coloniais de 1686 está aquele que dava a qualquer pessoa o direito de prender, castigar adequadamente e mandar para casa qualquer escravo que pudesse ser encontrado fora da plantação do seu senhor sem autorização. Este plano não foi totalmente eficaz e, em 1690, tornou-se dever de todas as pessoas, sob pena de quarenta xelins, prender e castigar qualquer escravo [encontrado] fora de sua plantação natal sem a devida multa. Este plano de tornar a punição dos escravos errantes uma responsabilidade de todos parece ter sido suficiente, pelo menos por algum tempo. (Henri, 1914: 28–29)

Mas hoje este processo de divisão de espécies não transforma os negros em espécies e não produz brancos com o potencial existencial de subjetividade plenamente realizada da mesma forma espetacular que o espetáculo de violência sobre o qual Henry escreveu na Carolina do Sul e que Fanon estava acostumado na Argélia. Na verdade, Martinot & Sexton sustentam que a atenção ao espetáculo nos leva a pensar na violência como contingente a transgressões simbólicas, em vez de pensar nela como uma matriz para a produção simultânea da morte negra e da sociedade civil branca:

O acontecimento espetacular camufla o funcionamento da lei policial como desprezo, a lei policial é o fato de que não há recurso para a perturbação da vida das pessoas [negras] por causa dessas atividades. (Martinot & Sexton, 2003: 6)

Aos “sem recurso”, os autores sugerem que os próprios negros desempenham uma função vital como marcadores vivos da violência gratuita. E o acontecimento espetacular é uma cena que desvia a atenção do paradigma da violência. Funciona como um cenário de “crowding out”. Excluindo a nossa compreensão de que, no que diz respeito à violência, ser negro é estar além do limite da contingência. Isto dá assim aos corpos do resto da sociedade (Humanos) alguma forma de coerência (uma relação contingente e não gratuita com a violência):

Na verdade, concentrar-se no acontecimento espetacular da violência policial é utilizar (e, assim, afirmar) a lógica do próprio perfilamento policial. No entanto, não podemos evitar esta lógica uma vez que nos submetamos à exigência de fornecer exemplos ou imagens do paradigma [uma vez que nos submetamos às práticas de significação]. Como resultado, a tentativa de articular o paradigma do policiamento torna-se não-paradigmática, reafirma a lógica do perfilamento policial e, assim, reduz-se à ética fraudulenta pela qual a sociedade civil branca racionaliza a sua existência [ênfase minha]. (idem: 6–7)

A ética fraudulenta pela qual a sociedade civil branca racionaliza a sua existência” perdura nas articulações dessa espécie com verdadeiro “recurso à ruptura” da vida (pelo paradigma do policiamento) e outro membro da mesma espécie, como o diálogo entre um repórter e um leitor, entre um eleitor e um candidato, ou entre um analisando e seus contemporâneos. O “recurso à ruptura” da vida é a primeira condição sob a qual pode ser encenado um conflito entre a significação entificada e uma verdadeira linguagem do desejo, uma linguagem não egóica dos contemporâneos, o discurso pleno: é preciso primeiro estar do lado do policiamento, e não o lado policiado, daquela divisão possibilitada pela matriz da violência. Por outras palavras, no que diz respeito à violência, é preciso permanecer deste lado do muro da contingência (tal como é preciso “ficar deste lado do muro da linguagem”, operando dentro do Simbólico) para permitir a fala plena. Ambas as matrizes, violência e alienação, precedem e antecipam a espécie.

A branquitude, então, e por extensão, os parceiros juniores da sociedade civil, não podem ser apenas “representadas” como alguma coerência monumentalizada de significantes fálicos, mas devem, em primeira instância ontológica, ser entendidos como uma formação de “contemporâneos” que não magnetizam balas. Esta é a essência da sua construção através de uma ausência significante; a sua presença significativa manifesta-se no fato de serem, mesmo que por omissão, representados contra aqueles que magnetizam as balas: em suma, os brancos não são simplesmente “protegidos” pela polícia, eles são a polícia.

Martinot & Sexton afirmam que o efeito-sujeito branco do paradigma policial de hoje é mais banal do que os efeito-sujeito branco do paradigma colonial de Fanon. Para Martinot & Sexton , elos não podem ser explicados recorrendo ao espetáculo da violência. “O espetáculo policial não é efeito do uniforme racial; pelo contrário, é o uniforme policial que está produzindo a re-racialização” (Martinot & Sexton, 2003: 8). Esta “re-racialização” ecoa a afirmação de Fanon de que “a causa é a consequência. Você é rico porque é branco, você é branco porque é rico” (Fanon, 1963:40). Enquanto no paradigma colonial de Fanon esta circularidade Branco/rico/rico/Branco se manifesta no acúmulo automático do potencial de produção de vida, no paradigma de policiamento de Martinot & Sexton ela se manifesta no acúmulo automático da própria vida. Marca a diferença entre aqueles que estão vivos, os sujeitos da sociedade civil, e aqueles que estão fatalmente vivos (Marriott, 2000: 16), ou “socialmente mortos” (Patterson, 1982), a “espécie” do “abandono absoluto” (Fanon, 1963 ).

Mais uma vez, o sujeito da sociedade civil é a espécie que não magnetiza balas, embora ela/ele não faça necessariamente qualquer defesa das práticas policiais ou do paradigma do policiamento como fez no século 19 Henry na Carolina do Sul. Como argumentam Martinot & Sexton , a estabilidade cívica da propriedade escravista dos EUA no século XXI não é mais um dever de cada pessoa branca cumprir. Na verdade, muitos brancos na esquerda realizam oposição progressista à polícia, mas cada atuação de oposição progressista encontra o que Martinot & Sexton chamam de

…uma certa limitação interna. …Os supostos segredos da supremacia branca são investigados nas suas exibições espetaculares, na patologia e na instrumentalidade, ou penhorados na figura do “policial desonesto”. Cada abordagem da raça subordina-a a algo que não é raça, como que para dar continuidade ao nobre esforço epistemológico de conhecê-la melhor. Mas o que cada um acaba falando é dessa outra coisa. Perante isto, o anti-racismo da esquerda torna-se a sua paixão. Mas sua paixão a denúncia. Significa a aceitação passiva da ideia de que a raça, considerada uma propriedade real de uma pessoa ou uma projeção imaginária, não é essencial para a estrutura social, um sistema de significados e categorizações sociais. É o mesmo aparato passivo da branquitude que, em seu disfarce dominante, esquece ativamente [de uma forma que os colonizadores dos primeiros três séculos simplesmente não conseguiam] que deve sua existência ao assassinato e ao terror daqueles que racializa para esse propósito, expulsando do rebanho humano no mesmo gesto de esquecimento. É a passividade da má-fé que aceita tacitamente como “o que nem é preciso dizer” os postulados da supremacia branca. E deve fazê-lo com paixão, uma vez que “o que é desnecessário dizer” é vazio e só pode ser considerado “verdade” através de uma obsessão. A verdade é que a verdade está na superfície, plana e repetitiva, assim como a lei é feita pelo uniforme. (Martinot & Sexton, 2003: 7–9)

Uma verdade sem profundidade, plana, repetitiva, superficial? Este efeito-sujeito irrepresentável é mais complexo do que as primeiras performances de solidariedade comunitária de H. M. Henry, em parte porque:

A gratuidade da sua repetição confere à supremacia branca uma descontinuidade inerente. Ela para e começa auto-referencialmente, por capricho. Teorizar alguma necessidade política, econômica ou psicológica para a sua repetição, o seu retorno interminável à violência, a sua necessidade de matar é perder a compreensão dessa gratuidade ao pensar que o seu desempenho é representável. Os seus atos de repetição são o seu acesso à irrepresentabilidade; eles dissolvem seu excesso na invisibilidade como uma simples ocorrência diária. Qualquer conteúdo mítico que pretenda reivindicar é a priori vazio. Seu segredo é que não tem profundidade. Não existe nenhum canto escuro que, uma vez trazido à luz da razão, desvendará seu sistema… Sua verdade reside nos rituais que sustentam sua lógica tortuosa e sem conteúdo; na verdade, nada mais é do que suas próprias práticas [ênfase minha]. (idem: 10)

Afirmar que o paradigma do policiamento não tem “conteúdo mítico”, que o seu desempenho é “irrepresentado” e que não há “necessidade política, econômica ou psicológica para a sua plenitude” é dizer algo mais profundo do que meramente “a sociedade civil existe em uma relação inversa às suas próprias reivindicações”. É dizer algo mais do que os autores dizem abertamente: que esta inversão se traduz hoje em reivindicações e exigências da polícia sobre a institucionalidade da sociedade civil e não o contrário. A implicação alargada da afirmação de Sexton e Martinot é muito mais devastadora. Pois esta afirmação, com a sua ênfase na gratuidade da violência — uma violência que não pode ser representada, mas que mesmo assim posiciona as espécies — rearticula a noção de Fanon de que, para os negros, a violência é uma matriz de (im)possibilidade, um paradigma de ontologia em oposição a uma performance que depende de transgressões simbólicas.

A alienação, porém, essa matriz lacaniana de castração simbólica e imaginária, sobre a qual os códigos são feitos e quebrados e a fala plena (ou vazia) é possível, passa a aparecer, por meio do encontro psicanalítico, como a matriz essencial da existência. Estamos em nosso lugar, insiste Lacan, deste lado do muro da linguagem. (Lacan, 1977: 101) É a grade na qual o analisando pode causar um curto-circuito na conformidade somática com os sintomas histéricos e interromper, ainda que temporariamente, a monumentalização egóica da fala vazia. Assim, o encontro psicanalítico em geral, e o discurso lacaniano completo em particular, trabalham para excluir a realização do sujeito branco de sua posicionalidade por meio da violência. É esse cenário de crowding-out que permite ao analisando da fala plena permanecer branco, mas “curado” (um mestre liberado?). E, além disso, o próprio cenário pesa como mais um dos acompanhamentos facilitadores da sociedade civil (como votação, construção de coalizões e “amor” inter-racial) para a produção do escravo — essa entidade:

…insensível à ética; representa não apenas a ausência de valores, mas também a negação de valores. Ele é, atrevamo-nos a admitir, o inimigo dos valores e, neste sentido, é o mal absoluto. Ele é o elemento corrosivo, destruindo tudo o que se aproxima dele; ele é o elemento deformante, desfigurando tudo o que tem a ver com beleza ou moralidade; ele é o depositário de poderes maléficos, o instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas (Fanon, 1963: 41)

Ao contrário da linha-de-base negra de Fanon, situada a priori em absoluto abandono, o analisando de Lacan está situado a priori na pessoalidade e circunscrito por “contemporâneos” que também são pessoas. O corpo de subjetivação de Lacan não é da mesma espécie que o corpo de dessubjetivação de Fanon. Não estou sugerindo que a psique dos negros esteja livre das maquinações do moi e, portanto, não tenha impedimentos num processo de “vir a ser em direção à morte”. O que estou perguntando é: como devemos confiar numa avaliação lacaniana do narcisismo negro? Metade desta contradição poderia ser resolvida se simplesmente renomeássemos o discurso completo como “discurso branco” (ou discurso humano) e anexado à “shingle” do analista, os negros não precisam se inscrever. “Eles podem não precisar inscrever-se, mas ainda são essenciais para estabelecer a diferença.” depois de todos os apoios e defesas que até então impediam o seu eu de vacilar, sim, mesmo depois de os abraços narcísicos da estagnação formal terem sido transformados em gravetos, e mesmo depois do trabalho através do qual o analisando redescobriu a sua alienação fundamental, ainda haverá um negro na pilha de lenha.

O que os mestres redescobrem nos escravos

A diferença entre Jesus e Buda é que, embora algumas pessoas possam tornar-se semelhantes a Cristo, a igreja não aceita bem a ideia de Jesus ser produzido em massa. Existe apenas um Jesus. Ele veio uma vez. Um dia, diz a lenda, ele voltará. Amém. Enquanto isso, teremos apenas que esperar. Uma psicanálise modelada no cristianismo teria uma tarefa difícil pela frente. Mas aproximando-se da morte da maneira mais inabalável, qualquer um pode se tornar um Buda. Não é de admirar que a prescrição de Lacan para o encontro analítico olhe para esta (não)religião sem igreja nem deus. Perto do final de “A função e o campo da fala e da linguagem na psicanálise”, Lacan reconhece a dívida que a fala plena tem para com o budismo, mas acrescenta, curiosamente, que a psicanálise não deve

…ir aos extremos a que [o Budismo] é levado, pois seriam contrários a certas limitações impostas pela [nossa técnica], uma aplicação discreta do seu princípio básico na análise parece-me muito mais aceitável…na medida em que [nossa ] técnica não acarreta, por si só, qualquer perigo de alienação do sujeito.

Pois [nossa] técnica apenas quebra o discurso para proferir o discurso. (Lacan, 1977: 100–101)

Ao contrário da psicologia do ego, e mais parecido com o budismo, Lacan abraçou a pulsão de morte como a agência que poderia desconstruir o discurso a fim de entregar a fala e, assim, perturbar a integridade corporal, a presença, a coerência — a monumentalização egóica — da subjetividade estagnada (ou discurso vazio, uma crença em si mesmo como ocupando uma posição de domínio no Imaginário, em vez de uma posição de nada no Simbólico). Muitos teóricos do cinema brancos e feministas brancas, como Mary Ann Doane, Constance Penley, Kaja Silverman, Jacqueline Rose, Janet Begstrom e Luce Iigaray, também abraçam a utilidade da pulsão de morte, pois é somente através da aceitação da pulsão de morte que a subjetividade masculina “normativa, a ruína da libertação das mulheres, pode libertar-se das identificações idiopáticas em oposição às identificações heteropáticas de estagnação formal. Como aponta Silverman, a morte psíquica, ou o autocancelamento, não é um problema menor. É digna de nota sua descrição do processo como uma espécie de êxtase de dor:

O êxtase masoquista… implica uma espécie de superação, uma elevação da psique, para fora e acima do corpo, para outros locais de sofrimento e, portanto, uma auto-alienação. Acontece…sobre um adiamento narcisista e, portanto, funciona contra a consolidação do ego isolado [ênfase minha]. (Silverman, 2000: 275)

Para Silverman, a ação emancipatória deste tipo de morte psíquica permite “uma espécie de reação em cadeia heteropática… [à medida que] o [sujeito] habita múltiplos locais de sofrimento”. Assim, a “exteriorização de uma psique nunca funciona para exaltar outra e a identidade é despojada de toda ‘presença’” (idem: 266).

Esta exteriorização da psique masculina branca na busca de habitar múltiplos locais de sofrimento, ou seja, mulheres brancas, tem seus custos. Os custos políticos para os homens brancos despojados de toda presença em relação às mulheres brancas são semelhantes à morte, mas não mortais. Nem a maioria das feministas brancas deseja que seja mortal. A advertência de Silverman, “Não pretendo de forma alguma propor a catástrofe como o antídoto para um meconnaissance em massa” (idem: 64), diverge dramaticamente da exigência de Fanon de que “a moralidade é muito concreta; é silenciar o desafio do colono, quebrar sua violência ostensiva — em uma palavra, colocá-lo fora de cena ”(Fanon, 1963: 44). O mesmo colono não resistirá às duas tempestades da mesma maneira. O tipo de “discurso completo” de Fanon deixa isso claro: “A violência que dominou a ordem do mundo colonial… será reivindicada e assumida pelo nativo no momento em que, decidindo incorporar a história em sua própria pessoa, ele surge nos bairros proibidos” (idem: 40). Para feministas como Silverman, o discurso pleno é o processo através do qual a analisanda “reivindica e assume” a alienação que rege a ordem do seu mundo. A analisanda passa a ouvir e assumir sua fala, ou seja, como assume seu desejo. Esta não é simplesmente uma busca pela libertação pessoal, mas sim a lógica presumida que subscreve dois projetos revolucionários (imbricados): o projeto político de mudança institucional ou paradigmática; juntamente com um projeto estético (isto é, contra-cinema) que acompanha o projeto político — os dois, então, trabalham em retransmissão um com o outro, uma dialética mutuamente capacitadora. Em “The Acoustic Mirror: The Female Voice in Psychoanalysis and Cinema”, Silverman sublinha a vulnerabilidade na couraça do paradigma edipiano (o ponto mais vulnerável ao ataque no que para ela é um paradigma de ordenação mundial). Sua leitura atenta do Ego e do Id de Freud nos lembra que existem “duas versões do complexo de Édipo, uma… que… funciona para alinhar suavemente o sujeito com a heterossexualidade e os valores dominantes da ordem simbólica, e a outra… que é culturalmente rejeita e organiza a subjetividade de formas fundamentalmente ‘perversas: e homossexuais’” (Silverman, 2003: 120). O édipo, portanto, pode ser reivindicado e assumido por uma agenda feminista revolucionária.

Fanon, no entanto, demonstra como as ferramentas de divisão das espécies são “reivindicadas e assumidas” por aquela espécie de abandono absoluto; como a violência é transformada em vantagem do nativo. Esta noção de incorporar a “história na sua própria pessoa” pode ser comparada a um sujeito que se perde na linguagem (reconhecimento do vazio). Mas é importante não perder de vista a diferença entre as implicações fanonianas das “espécies” e as implicações lacanianas dos “sujeitos” porque a história, para Fanon, excede a significação. Além disso, para o sujeito lacaniano, a rede de alienação oferece a possibilidade de algum tipo de comunicação entre os sujeitos — uma unidade superior de contemporâneos. Já para Fanon:

Desmembrar o mundo colonial não significa que, depois da abolição das fronteiras, serão estabelecidas linhas de comunicação entre as duas zonas. A destruição do mundo colonial é nada mais nada menos do que a abolição de uma zona, o seu sepultamento nas profundezas da terra. (Fanon, 1963: 40–41)

Dizer, como faz Silverman, que “não pretendo de forma alguma propor a catástrofe como o antídoto para um meconnaissance em massa” é, afirmo, dizer que os dois antagonistas são da mesma espécie — eles foram divididos em zonas não separadas, mas juntas. Então, eles não são realmente antagonistas. Para ser mais preciso, a violência no que se refere e estrutura as relações de gênero entre homens brancos e mulheres brancas (e de fato o faz!) é de natureza contingente: as mulheres brancas que “transgridem” a sua posicionalidade na ordem simbólica correm o risco de ataque. Mas, como Saidiya Hartman (e Fanon) deixam claro, a contingência não é o que estrutura a violência entre homens brancos e mulheres negras, mulheres brancas e mulheres negras, mulheres brancas e homens negros, ou homens brancos e homens negros. Estas relações entre brancos e negros partilham, como elemento constituinte, uma ausência de contingência no que diz respeito à violência. A ausência de contingência elimina a necessidade de transgressão, que é uma pré-condição da violência intra-colonos (de homens brancos para mulheres brancas).

Está em jogo aqui mais do que a monumentalização da supremacia branca através da imposição de significantes culturais. Surgem questões importantes sobre a possibilidade do discurso pleno, a possibilidade de um analisando falar na linguagem de seus “contemporâneos” quando o campo é composto por Brancos e Negros. Dito de outra forma, como adiar o narcisismo de uma relação real? Como pode a fala por si só retirar aos brancos toda presença diante dos negros? Qual é o perigo real envolvido em elevar a psique Branca para fora do corpo, para locais de sofrimento Negro? Em suma, que tipo de performance seria essa? Deparamo-nos com a advertência de Lacan de não levar as técnicas budistas para além de “certas limitações impostas pela [psicanálise]”, as limitações do discurso.

Ao examinar os espetáculos do grupo de escravos, as festas de escravos nas plantações, as apresentações musicais de escravos para senhores e as cenas de “intimidade” e “sedução” entre mulheres negras e homens brancos, Saidiya Hartman ilustra como nenhum ato discursivo dos negros em relação aos brancos ou dos brancos para com os negros, do mundano e cotidiano ao horrível e estranho pode ser desembaraçado da gratuidade da violência que estrutura o sofrimento dos negros. Este sofrimento estrutural, que sustenta o espectro da vida negra, desde palavras ternas de “amor” ditas entre mulheres escravas e homens brancos até gritos no pelourinho, está imbricado na “fungibilidade do corpo cativo” (Hartman, 1997: 19). A “fungibilidade” negra é um efeito de violência que marca a diferença entre a posicionalidade negra e a posicionalidade branca e, como Hartman deixa claro, esta diferença na posicionalidade marca uma diferença entre capacidades de fala.

A fungibilidade da negritude induzida pela violência permite a sua apropriação pelas psiques brancas como “propriedade de prazer” (idem: 23–25). O que é mais notável é que a fungibilidade negra é também aquela propriedade que inaugura a empatia branca em relação ao sofrimento negro (idem: 23–25). Poderíamos dizer que a fungibilidade Negra catalisa uma “reação em cadeia heteropática” que permite que um sujeito Branco habite múltiplos locais de sofrimento. Mas, novamente, será que a exteriorização de uma psique (Silverman, 2003: 266), possibilitada pela negritude, despoja com sucesso a identidade branca de toda presença? Hartman coloca esta questão na sua crítica à fantasia de um homem branco do Norte que substitui o corpo dos escravos pelos corpos dele e da sua família, à medida que os escravos são espancados:

[Ao] exportar a vulnerabilidade do corpo cativo como um recipiente para os usos, pensamentos e sentimentos de outros, a humanidade estendida ao escravo inadvertidamente confirma as expectativas e desejos definitivos das relações de escravidão móvel. Por outras palavras, o caso da identificação empática de Rankin deve-se tanto às suas boas intenções e oposição sincera à escravatura como à fungibilidade do corpo cativo… Na fantasia de ser espancado…Rankin torna-se um procurador e a dor do outro é reconhecida na medida em que pode ser imaginado, mas em virtude desta substituição o objeto de identificação ameaça desaparecer. (Hartman, 1997: 19)

Hartman põe em causa as reivindicações emancipatórias (tanto para a psique individual como para o socius) de identificação heteropática e de autocancelamento masoquista (perda de si no outro, um processo pertinente ao discurso pleno) quando essas reivindicações não são circunscritas por uma formação social branca — quando afirmam ser mais do que discussões intra-humanas. Pois nenhuma teia de analogia pode ser tecida entre, por um lado, o corpo livre que monta a carne fungível numa jornada emancipatória rumo ao autocancelamento e, por outro lado, aquele ser fungível que acaba de ser montado. As duas posições são estruturalmente inconciliáveis, o que significa que não são “contemporâneas”. Hartman coloca um ponto mais preciso sobre isso:

…o esforço para neutralizar a insensibilidade comum ao sofrimento negro exige que o corpo branco seja posicionado no lugar do corpo negro, a fim de tornar este sofrimento visível e inteligível. No entanto, se esta violência pode tornar-se palpável e a indignação só pode ser plenamente despertada através da fantasia masoquista, então torna-se claro que a empatia tem dois gumes, pois ao tornar próprio o sofrimento do outro, este sofrimento é obliterado pela obliteração do outro. (idem: 19)

Vale a pena repetir as lições dos historiadores culturais: que a experiência negra é um “fenômeno sem análogo” (Genovese, 1993); que a “alienação natal” é um elemento constituinte da escravidão (Patterson, 1982; Hartman, 1997); que os negros estão socialmente mortos; e a alienação natal confere à espécie um passado, mas não uma herança (Patterson, 1982). Portanto, mesmo que, através da iconoclastia do devir em direção à morte, o analisando desmonte seus monumentos, mesmo que desconstrua seu patrimônio, ele ainda existirá em relação ao patrimônio, por mais desconstruído que seja, e é a possibilidade do próprio patrimônio, uma vida de balas não magnetizáveis (Martinot & Sexton, 2003), uma vida de violência contingente (em vez de gratuita), que separa sua espécie daqueles com uma vida de violência gratuita. Ao examinar as escolhas objetais de sua herança plena de significado, em vez de um passado negro e sem sentido, ele passa a assumir seu desejo onde está (o objetivo da fala plena). Mas embora onde ele esteja possa não ser onde começou a sua relação (antes da identificação heteropática com a negritude) com os seus “contemporâneos”, é de facto ainda mais intensamente onde começou a sua relação com os negros.

Conclusão

A antinegritude manifesta-se como a monumentalização e o fortalecimento da sociedade civil contra a morte social. “O narcisismo pode ser desconstruído em busca da subjetividade, mas a sociedade civil permanece fortalecida.” Embora o encontro analítico de Lacan, o processo do discurso pleno, seja desconstrutivo do narcisismo interno à sociedade civil, é apenas um em uma ampla gama de encontros (da votação à construção de coalizões, até encontros filiais “inocentes”) e é re-constitutiva da fortificação da sociedade civil contra a morte social. Se, por outro lado, os fundamentos da supremacia branca fossem construídos unicamente sobre uma grade de alienação, onde a significação entificada afastaria a invasão da significação desconstrutiva, então o discurso completo sustentaria a promessa revolucionária do fim da supremacia branca, da mesma forma que muitos teóricos do cinema branco e feministas demonstraram que o discurso pleno pode acelerar o desaparecimento do patriarcado intra-humano. Mas, como Fanon adverte tão vividamente, os fundamentos da supremacia branca e do humanismo também são construídos sobre uma grade de violência, onde as posições de violência contingente são separadas das posições de violência gratuita (da posição escrava). Aqui dois tipos de “espécies” são produzidos e delimitados além dos limites da fala. A distinção social entre Brancos (ou Humanos) e Negros não pode ser avaliada nem corrigida apenas através de práticas de significação, porque a distinção social entre vida e morte não pode ser falada. “É impossível reparar totalmente esta dolorosa condição sem a ocorrência de um evento de proporções épicas e revolucionárias… a destruição de uma ordem social racista” [grifo meu] (Hartman, 1997: 77).”.

Na vida, a identificação é limitada apenas pelo jogo de analogias intermináveis, mas a morte não se parece com nada. Talvez a psicanálise e a promessa do discurso pleno não estejam preparadas para o fim do mundo.

Referências

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NOTAS

[i] Estou ajustando a noção de descolonização de Fanon para atender às necessidades do sujeito pós-emancipação (o escravo) em oposição ao sujeito pós-colonial (o nativo). Acho que o próprio Fanon faz isso em “Pele Negra, Máscaras Brancas”. Quando ele escreve “Os Condenados da Terra”, eu diria que ele muitas vezes ventriloquiza em nome do sujeito pós-colonial. As suas cartas ao irmão parecem sugerir como (se não porquê) ele não pode ser um “contemporâneo” dos árabes, apesar de lutarem no mesmo exército de guerrilha contra um inimigo em comum: a França.

[ii]Entre os anos de 1882 e 1968, os linchamentos ceifaram, em média, pelo menos uma vida por semana. Quase 5.000 homens negros foram linchados. Além disso, mulheres negras, judeus, ladrões de gado brancos e algumas mulheres brancas tornaram-se seus objetos. A prática começou muito antes da Guerra Civil, mas atingiu o auge durante a reação à Reconstrução, especialmente durante a década imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Destinava-se a negros instruídos e bem-sucedidos, aqueles em posições de liderança, aqueles determinados a melhorar, aqueles que possuíam fazendas. e lojas, os suspeitos de terem economizado seus ganhos, aqueles que acabaram de fazer uma colheita — isto é, homens e mulheres negros percebidos pelos brancos como tendo saído de seu lugar, tentando ser brancos”. (Williams, 2000: 6, 9). Os linchamentos variaram, geograficamente, de San Jose, Califórnia, a St. Paul, Minnesota, até Dixie.

[ii] Aqui estou pensando psicanaliticamente a alienação como uma gramática, isto é, através da estrutura da economia libidinal. Na secção de abertura do capítulo 1, penso na alienação através do quadro da economia política.

[i] Tradução para fins didáticos de “The Narcissistic Slave”, segundo capítulo de Frank B. Wilderson, III, “Red, White & Black: Cinema and The Structure of U.S. Antagonisms”, Duke University Press, 2010. Pp. 54–91. O texto foi indicado para discussão na disciplina “Teoria Social II: Temas Emergentes” no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

[ii] Agradeço a Saidiya Hartman, que me sugeriu o apelido de Afro pessimismo. O termo tem sido utilizado para descrever a lógica presuntiva de jornalistas e acadêmicos de relações internacionais que veem a África Subsariana como uma região demasiado repleta de problemas para a boa governança e o desenvolvimento econômico. Ganhou popularidade na década de 1980, quando muitos acadêmicos e jornalistas nos países ocidentais acreditavam que não havia esperança de instaurar a democracia e alcançar o desenvolvimento econômico sustentável na região. Meu uso da palavra não tem nenhuma semelhança com esta definição.

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