O Congresso de 1956: Para além da Negritude e do Nacionalismo Cultural[1]
Manthia Diawara[2]
Minha apresentação hoje aqui na Universidade de Bayreuth está baseada no Congresso de Paris, como uma das origens dos Black Cultural Studies, tal como os conhecemos hoje[3]. Figuras chave — como Senghor, George Lamming, Cesaire, Jack Alexis, Fanon, Enwonwu, Cheik Anta Diop, Richard Wright e Edouard Glissant, para nomear apenas estes — que hoje em dia associamos com o Movimento da Negritude, Nacionalismo Cultural, Afrocentrismo, Pós-Colonialismo e Estudos Culturais Negros, estiveram lá presentes, nessa conferência inovadora.
Figura 1: Delegados no 1o. Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris, 1956.
Para mim, o primeiro ponto em disputa, e portanto de ultrapassagem de fronteiras estabelecidas, relacionou-se a à tentativa dos organizadores de encontrar uma base comum, que estaria até então baseada apenas na raça, entre Americanos, Caribenhos e Africanos, e entre os assim chamados francófonos, anglófonos e lusófonos, de outra parte. A imprensa francesa era particularmente hostil a qualquer reconhecimento da raça como traço de unificação; especialmente em reconhecer que nigerianos e senegaleses foram colonizados, e que suas civilizações foram aniquiladas por causa de sua comum raça negra, o que seria o equivalente a uma contestação do Império Francês. Muitos artigos foram negativos em sua percepção sobre Congresso, visto como ingrato com relação à cultura ocidental e francesa, que teria sido tão liberal e generosa para com os negros.
Outro ato transgressor de ultrapassagem, realizado pelos conferencistas, e que não se acomodou bem as preocupações francesas, tem a ver com a diluição das fronteiras entre cultura e politica. A principal razão para que Alioune Dioup, e sua editora Presence Africaine tivesse garantida a permissão para participar da conferência em Paris, na Sorbonne, foi que eles deveriam limitar-se a questões de práticas culturais na África e na Diáspora; assim como deveriam afastar-se da politica, e dos debates políticos sobre a descolonização. A guerra na Argélia havia acabado de começar, logo após a retirada das tropas francesas do Vietnam; e havia a brutal repressão dos independentistas em Madagascar, na Costa do Marfim, nos Camarões, etc.
Obvio, que era difícil, se não impossível, separar cultura e politica, nesses tempos de ferventes agitações por descolonização na África, na América Latina e na Ásia, para não falar do sistema do Jim Crow[4] nos Estados Unidos. A Conferência de Bandung tinha acabado de acontecer, inaugurando um forte sentimento de autodeterminação e soberania nacional entre os povos da África e da Ásia, confrontados com o antagonismo da Guerra Fria, entre a OTAN e o Bloco Soviético. A geopolítica do mundo estava mudando, com a emergência de líderes não-alinhados, como Nehru, Nasser, Nkrumah, Castro e Mao, dentre outros.
Alioune Diop, da Presence Africaine, e Richard Wright[5] estiveram presentes nesse histórico encontro em Bandung, que não foi apenas um caudaloso momento para a criação de ideologias de base para formações como o “Bloco Não-Alinhado”, o “Terceiro Mundo” e a “Tri-Continental”, mas também para a grande ressurgência de estruturas de sentimento nacionais e descolonizantes na África e na Ásia.
Jacques Rabemananjara, poeta de Madagascar, que havia acabado de ser liberto após dez anos de prisão politica, argumentou que os escritores e artistas do Congresso soaram o sino de Bandung, que “pôs um fim espetacular a diversos séculos de monólogo ocidental” sobre o resto do mundo. O Ocidente não poderia mais seguir em frente como se Bandung nunca tivesse ocorrido; o Congresso de Paris, do mesmo modo, estava ali para lembrar a todos disso. Para ele, a própria existência do congresso “significava a epifania do mundo negro”, pronta para combater o preconceito, descontruir estereótipos, afirmar e assegurar a contribuição da África e da Diáspora para as novas humanidades que estavam surgindo no mundo moderno.
De modo significativo, Rabemananjara insistia que, por causa de Bandung, “uma nova humanidade estava nascendo, e desafiando mentalidades retrógadas e coloniais, e favor da modernidade e do progresso”. De acordo com ele, estas novas humanidades também revelavam os limites da supremacia racial do Ocidente e a dominação cultural do mundo não-branco, ao mesmo tempo em que liberava a África e a Diáspora do jugo da tradição e da morte cultural sob a opressão colonial.
Leopold Sédar Senghor[6], do mesmo modo, chamou o Congresso de uma “Bandung cultural e espiritual”, onde seria possível celebrar, sem nenhum complexo, o renascimento da personalidade africana, através do estudo do que ele chamava de “os conteúdos objetivos e subjetivos da Negritude”. O seu companheiro “Negritudinist”, Aime Cesaire, determinou que o encontro histórico em Bandung não foi apenas um grande evento politico, mas também um importante evento cultural: “porque foi um levante pacífico daqueles que estavam famintos não apenas de justiça e dignidade, mas também daquilo que o colonialismo tomou deles em primeiro lugar, isso é, a cultura”. Cesaire concluiu que: “Nós estamos aqui para dizer, e exigir, deixe o nosso povo falar, permitam que o povo negro entre no grande palco da História”.
Mas, como veremos, nos debates que se seguiram no Congresso, o abraço da Negritude e da modernidade pelos participantes também ergueu novas fronteiras e politicas de identidade dualistas, que precisariam ser superadas para alcançar-se uma autêntica e verdadeira descolonização. Iremos considerar em primeiro lugar as intervenções de Senghor, Cesaire e Fanon como configurando novas fronteiras estratégicas para a reabilitação das identidades negras africanas; e em seguida discutiremos a teoria da Poética da Relação de Edouard Glissant, como um passo para além de todas as barreiras e dualismos.
Negritude como Cultura Negra Universal
Primeiramente temos que levar em conta, como coloca Fanon em “Os Condenados da Terra”, que a afirmação da identidade negra pelo Movimento de Negritude foi precedida pela afirmação de uma identidade branca superior, que considerava as populações não-ocidentais como seu Outro; um pensamento dualístico sobre o si-mesmo como civilizado e o Outro como bárbaro. A defesa da Negritude por Senghor, em sua apresentação, seguiu a lógica do essencialismo, quando ele afirmou que “o espírito da civilização negra africana anima, consciente ou inconscientemente, os melhores artistas negros de hoje, quer eles venham da África ou da América”.
Ao afirmar a civilização negra africana como a fundação do espírito da literatura, da música e da arte da Diáspora negra, Senghor estava convidando os escritores e artistas do Congresso a deixar que sua Negritude, o espírito daquilo que os tornava negros, guiasse a sua criatividade. Para dar um exemplo, Senghor afirmou que o que levou os norte-americanos a finalmente aceitarem a humanidade e igualdade do povo negro, e os europeus a questionarem a legitimidade da dominação colonial, foi menos a militância e o radicalismo politico, e mais a contribuição dos escritores e artistas para as novas humanidades na cena mundial. Ele concluiu que todo o mundo moderno estava atravessado e revitalizado pela música, dança, escultura e literatura negras e suas por filosofias tradicionais[7].
Senghor tinha em mente, é claro, a influência das máscaras e estátuas africanas sobre modernistas europeus como Picasso e Epstein, e também a posição central que o Jazz ocupava na cena musical moderna e na linguagem fílmica. Ele diria posteriormente que a máscara africana e o trompete negro americano foram os dois elementos dominantes do modernismo.
Senghor postulou duas definições da Negritude: uma objetiva, outra subjetiva. Por negritude objetiva ele referia-se aos grandes impérios e civilizações africanas, como narradas em épicos, poemas e na tradição oral. Negritude subjetiva, por outro lado, definia a arte negra, tal como governada pelo ritmo, emoção e intuição.
Para Senghor, o ritmo era para os africanos o primeiro signo da arte. A função da arte para os povos africanos seria por em movimento a força vital que emanava dos ancestrais na forma do ritmo, e que fluía através de performances mascaradas para a audiência, que deveria também participar no ritual, a fim de receber a energia viva, necessária para a cura de toda a sociedade.[8]
“As Estátuas também Morrem” (1953), um filme de Chris Marker e Alain Resnais foi exibido no Congresso, oferecendo excelente ilustração da tese de Senghor sobre arte africana, como funcional e ligada a uma audiência original/originária.
Figura 2: Mascara africana em “Les Statues Meurent Aussi”(1953).
O filme propõe uma crítica do gesto contraditório na cultura ocidental que, de um lado, condena o colonialismo e a destruição das tradições africanas, e de outro eleva as máscaras e estátuas africanas ao nível da arte em seus museus. Ironicamente, a remoção desses objetos de sua configuração ritual, acaba por mata-los
Como o filme as apresenta, nós vemos as máscaras e estátuas sendo classificadas, rotuladas e exibidas através de vidraças em museus ocidentais. O filme mergulha, então, pelos caminhos da história da arte, apontando o que ocorreu anteriormente as estátuas gregas e egípcias. Para Resnais e Marker, os museus do ocidente forçaram as máscaras e estátuas a responder a significados formalistas, que simultaneamente as despoja de qualquer verdadeiro conteúdo ou significação, tornando-as algum tipo de mimese da história da arte eurocêntrica.
O que é, então, roubado das máscaras e estátuas pode ser visto apenas através daquilo que os museus do ocidente obrigaram esses objetos de ritual a, todavia, se tornarem. O que está perdido é o ato de comunhão que se encontra na arte negra; o que aparece em seu lugar é o homem negro separado de seus deuses, de sua cultura, de seu próprio corpo, enfim.
Para Resnais e Marker, assim como para Senghor, o homem branco projeta seus próprios demônios sobre o homem negro, a fim de aniquilar a sua cultura e civilização, o que é uma clara manifestação de racismo. Como a voz over do filme coloca, o homem branco “inventa um jargão decadente para falar sobre as estátuas e máscaras” nos museus. Ele exclui a dimensão espiritual da arte africana, e a transforma em arte kitsch para turistas. Ao fazer isso, o homem branco substitui o ancestral africano como figura de autoridade por detrás das máscaras e estátuas.
“As Estátuas também Morrem” foi banida pelo governo francês, em função das críticas virulentas feitas à pilhagem de objetos rituais pelos museus e administradores coloniais. O discurso do filme também serve ao argumento de Senghor sobre a arte negra, governada pela taxonomia de seu próprio ritmo e identidade; ou seja, a arte africana existe apenas através da performance, diante de uma audiência, em estreita proximidade e contato direto com os ancestrais. Para os realizadores do filme , e para Senghor, a arte africana perde seu ritmo e força vital, quando pendurada nas paredes dos museus ocidentais.
Nacionalismo Cultural Negro
“Colonialismo nunca poderá ser subjugado pela criatividade… cada colonialisms é caracterizado pela morte da civilização do povo sob sua dominação”
“A ilusão de Deschamps: o colonialismo trará cirurgiões da França e a civilização da Espanha e Inglaterra”[9]
Parece que, por causa do espirito de Bandung e da febre dos movimentos de descolonização, muitos participantes do congresso se desviaram das fronteiras estabelecidas pela definição de Senghor de negritude e de cultura negra. Havia, particularmente, uma tendência em direção a uma nova formulação do nacionalismo cultural africano, que foi encabeçada por Cesaire, Fanon, Richard Wright, Anta Diop e Jacques Alexis, e que desafiava a Negritude Senghoriana, considerada essencialista, idílica, uma espécie de racismo antirracista, em ultima instância acomodando o complexo de superioridade dos colonialistas e das forças imperiais.
Por uma questão de espaço e tempo aqui, permitam-me apenas focar nas apresentações de Cesaire e Fanon. Cesaire pôs a casa a baixo em aplausos quando afirmou que: “Eu penso que é de fato verdade, que não há nenhuma cultura que não a cultura nacional” . Para demonstrar o seu ponto, Cesaire baseou-se em diversas definições de cultura feitas por antropólogos e filósofos, incluindo Hegel, Nietzsche, Marx, Mauss, Malinowski, etc. Sua tese principal era que o colonialismo destruiu as culturas indígenas, de qualquer ponto de vista considerado: social, econômico, politico e artístico.
Portanto, as culturas negras sob o colonialismo, semi-colonialismo, ou para-colonialismo têm poucas chances de sobreviver na África, muito menos no Caribe, na América do Sul ou nos Estados Unidos. A politica colonial, e os sistemas sociais dos regimes dominantes impede qualquer forma de criatividade por parte dos povos dominados, sufocando, petrificando e reificando a sua cultura. Citando Hegel, Cesaire afirma, “não deveríamos nem exagerar, nem subestimar a influência da natureza (sobre a cultura); uma vez que os climas temperados de Iônia devem ter muito contribuído para o gracioso tom dos poemas homéricos. Contudo, apenas isso não pode receber o credito pela produção de poetas como Homero. A verdade é que Iônia não poderia ter sempre assegurada a existência de tais poetas; na verdade, não houve nenhum (bardo ou poeta) durante toda ocupação persa”.
Cesaire levanta questão da linguagem, uma vez que os colonialistas são conhecidos por deprimir ou suprimir as línguas locais; “a linguagem dos povos está psicologicamente petrificada por não ser a linguagem oficial, por ser uma linguagem degradada, ao invés da língua da escolas e das ideias”.
Citando Nietzsche, ele descreve a cultura como um “estilo”, e não como meramente constituída pela leitura e absorção de um monte de livros. Para ele, a cultura é uma realização material e espiritual discernível em cada sociedade; um modo de vida dinâmico de um povo que luta para trazer à vida sua personalidade e seu caráter; “é a maneira como as pessoas se vestem, a maneira como mantem a sua cabeça erguida, caminham, a maneira como amarram suas gravatas; não é apenas sobre escrever livros e construir casas; é a coisa toda”.
Para concluir, Cesaire argumenta que a cultura, cada cultura, tem não apenas seu próprio estilo, mas é condicionada pela geografia, emoção, e mais importante, pela politica. E, precisamente, pelo fato de que os povos negros estão dominados na África, no Caribe e na América pela situação social e econômica imperialista, colonial, semicolonial e paracolonial, é mais apropriado falar sobre a cultura de uma pequena elite de intelectuais negros na Metrópole, ao invés da iminência de uma cultura negra.
Em seu ensaio, “Racismo e Cultura”, Fanon, argumenta que mesmo o blues americano é a resposta dos escravos à opressão, e não expressão de autêntica cultura negra. Para ele, o racismo é um termo de mediação entre negros e brancos, no qual o primeiro domina o segundo e aniquila a sua cultura. Dessa forma, para Fanon, “sem opressão e sem racismo, não existe o Blues. O fim do racismo será também o fim da grande música americana [que é o blues]”.
Figura 3: A cantora de blues afro-americana Bessie Smith.
A principal tese de Fanon, que ele depois desenvolveria em “Os Condenados da Terra”, é que os africanos deveriam mover-se para além da Negritude, que não poderia nutri-los. Eles deveriam tomar armas para liberar a si mesmos; e essa seria a única forma pela qual poderiam recuperar novas energias criativas, para a formação de novas culturas liberadas, novas artes, e um novo sentimento de orgulho.
Para enfatizar o seu argumento, e o de Cesaire, sobre as fronteiras e especificidades das culturas nacionais, Fanon diz, em “Os Condenados da Terra”, “cada cultura é em primeiro lugar e acima de tudo nacional, e que os problemas com relação ao quais Richard Wright e Langston Hughes precisam estar alertas são fundamentalmente diferentes daqueles enfrentados por Leopold Senghor e Jomo Kenyatta”. [Wright, Baldwin e Alexis, também enfatizaram este ponto sobre diferentes negros tendo diferentes culturas, dependendo se eles estão na África, no Caribe ou nas Américas].
Além da Fronteira: A Poética da Relação de Edouard Glissant
“Si elle contredit aux intolérances territoriales, a la prédation de la racine unique (qui rend si difficiles a aujourd’hui démarches identitaires), c’est parce que, dans la poétique de la Relation, l’errant, qui n’est pas les voyageur, ni le découvreur, ni le conquérant, cherche a connaitre la totalité du monde et sait déjà qu’il ne l’accomplira jamais — et qu’en cela réside la beauté menace du monde”
(Poetique de la Relation, p. 33)
Claramente Senghor, Cesaire e Fanon estavam lidando com a formação de fronteiras, que afetaram as identidades do povo negro na África e na Diáspora. A afirmação de Senghor, de uma identidade racial africana, que poderíamos corretamente rotular, após Jean-Paul Sartre, como um racismo anti-racista, e a procura de Fanon e Cesaire por soberania nacional como garantia contra a morte cultural, ainda encontram ressonâncias nos estudos contemporâneos de identidade, pós-colonialismo e diáspora. Para muitos, a afirmação de auto-estima e orgulho racial, como postulados pela Negritude de Senghor, é necessária e constitutiva do principal enquadramento para o estudo dos estilos negros, e sua transformação na arte contemporânea, na literatura, na música e mesmo na politica. Todavia, como nossa leitura de Cesaire e Fanon revelou, a localização (location) da identidade em termos raciais aprisiona essa identidade em uma caixa essencialista e ahistórica.
Esta definição culturalista da identidade está também ligada a noção que apenas concebe o Outro como o oposto de si mesmo; um essencialismo dualista que tem revelado hoje em dia os seus próprios e muitos limites. Edouard Glissant, por exemplo, acredita que esta definição dualista de apoio da identidade tem como premissa a oposição do “Eu” versus o “Outro”, na qual o “Eu” é o cidadão, o civilizado e aquele dotado de linguagem, que é justaposto ao “Outro”, o bárbaro, sem linguagem ou cultura. Este “Eu” sempre foi o “si” branco, agora com a Negritude teríamos um “si” negro que é o oposto do desalmado, frio (emontioless), desritmado, desestilístico “Outro”, o branco.
De acordo com Glissant o problema inerente nesta oposição binária entre o “Eu” e o “Outro”, é que ela sempre leva em conta raízes únicas em sua definição de identidade e cultura. Glissant vê esse problema não apenas com relação ao movimento da Negritude, mas também nos estudos culturais e pós-coloniais contemporâneos, que ainda veem a identidade como uma oposição a, (ou “contra”) em contraposição a uma busca por, um movimento em direção a, uma interpelação por, uma identificação com a diferença constituída pela “Outridade” (Otherness). “Frequentemente nos encontramos lidando com o problema do Outro”. (Poetique de la Relation, p.31).
Este é, talvez, um bom lugar[10] para discutir a crítica de Glissant a tese nacionalista de Fanon e Cesaire. Ele argumenta que o nacionalismo que esses pensadores da Martinica buscam para a África está baseada em um modelo europeu, que encontra sua legitimidade na possessão, repossessão ou apropriação de um território que um povo chama de seu. Invoca-se um mito ou poema épico — contos homéricos, ou o Épico de Sundiata, ou “Things Fall Apart”[11] — para justificar seus direitos a esse território. [As narrativas de retorno de Sundiata e Okonkwo[12] são interessantes aqui, em termos de se eles levam, ou não, em consideração a experiência do exílio, errância e nomadismo].
Cada nacionalismo conecta, portanto, os movimentos de descolonização à busca por liberdade e identidade, completamente ligados, por sua vez, à legitimação do direito de reconquista da terra dos colonizadores. Terra e sedentarismo em oposição a errância e nomadismo, é para os nacionalistas, também, a garantia de autonomia, soberania e autodeterminação, tudo o que, segundo Glissant, vê a identidade como enraizada; “une identite racine”, que é o oposto de uma identidade adquirida através da Relação.
O que é a Poética da Relação para Glissant? É o que ata, liga, conecta e retransmite todas as diferenças que são possíveis e invisíveis no mundo. Para Glissant, a única forma de ir além das fronteiras postas pelas oposições binárias, vem através dessas diferenças que constituem e mantem integrado em unidade (hold togheter) o mundo, uma totalidade que não é totalizante, nem totalitária. “Le pensée de l’Autre ne cessera d’être duelle qu’a ce moment ou les différences auront été reconnues”.
Do mesmo modo como ele conecta a concepção dualista de identidade, que se opõe a um hermético e insondável “Outro”, às noção de raízes únicas, Glissant postula sua teoria da identidade, adquirida através da Relação, na teoria do rizoma, o que tem múltiplas raízes. Baseando-se em Deleuze e Guattari, Glissant insiste, o rizoma enraíza-se e multiplica a si mesmo, x-vezes, em uma rede de extremidades estendidas na terra ou no ar, sem destruir ou desnaturar uma a outra de modo predatório. É o enraizamento sem o impulso totalizante ou totalitário.
Nesse sentido, cada identidade é sustentada através de sua Relação de diferença com uma identidade que é “Outra”. Cada identidade cresce a partir de sua relação com o “Outro”. Com Glissant nos encontramos em um mundo das múltiplas posições de identidade, múltiplas relações com o “Outro”, onde novas possibilidades surgem e encontramos a realização de nossa própria identidade na nossa busca pelo “Outro”, na nossa identificação com os problemas do “Outro”.
Glissant, em uma virada irônica, afirma, por fim, que a busca de Fanon pela liberdade para os Argelinos, por exemplo, o levou a descobrir a sua própria identidade; o que mostra que a identidade não está sempre enterrada em raízes, apenas encontrada no reconhecimento das próprias raízes, mas também se realiza por meio do encontro com o “Outro”.
Tradução: Osmundo Pinho
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Cachoeira)
[1] Conferência proferida no “Third Festival of African and African-Diasporic Literature — Intertextuality: Dialogues in Motion”. Promovida pelo Bayreuth University’s African Cultural Center, Iwalewa-Haus, em Bayreuth na Alemanha em junho de 2013.
[2] Manthia Diawara nasceu em Bamako no Mali, costa ocidental da África, e desde 1992 é professor de cinema e literatura comparada na New York University, onde criou o Departamento de Africana Studies , além de dirigir o “Institute of African American Affairs”. É autor consagrado de dezenas de artigos e livros e realizador de filmes documentários premiados, a exemplo de “One World in Relation”, uma conversação com poeta e pensador martinicano Edouard Glissant. Diwara é curador internacional de mostras de filme africano e um intelectual crítico — transnacional — da diáspora africana.
[3] N. do T.: O Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros foi organizado em Paris pela editora Présence Africaine, de Alioune Diop, entre os dias 19 e 22 de setembro de 1956, na Universidade de Sorbonne.
[4] N. do T.: Como ficaram conhecidas as políticas institucionais de segregação racial no Sul dos Estados Unidos. O sistema vigorou ate 1965, sendo derrotado apenas após intensa mobilização politica, no que ficou conhecido como o movimento do Direitos Civis, capitaneada por Martin Luther King Jr., dentre outros.
[5] N. Do T.: Escritor Afro-americano, autor de “Native Son” (1940) e “Black Boy” (1945), dentre outros livros de sucesso.
[6] Poeta, politico e teórico senegalês, foi o primeiro presidente pós-colonial da nação localizada na costa ocidental da África (1960–1980). Com Aimé Cesaire e Leon Damas foi o criador do conceito de Negritude.
[7] N. do A.: Ver o ponto de Cesaire sobre o comunitarismo africano, arte e outras contribuições humanísticas para as civilizações mundiais.
[8] N. do A.: Ver Glissant: “Nada é verdade, tudo esta vivo”.
[9] N. do T. : Não há referência no original para essa citação.
[10] N. do T.: O autor se refere à cidade de Bayreuth, local da conferência, onde está sepultado o compositor alemão Richard Wagner.
[11] N. do T. : O “Épico de Sundiata”, narrativa tradicional que conta a história de Sundiata Keita, heroico fundador do Império do Mali, no século XIII. “Things fall Apart” (1958), romance do escritor nigeriano Chinua Achebe. O título do romance é uma citação de um poema do escritor irlandês William B. Yeats: “Turning and turning in the widening gyre/The falcon cannot hear the falconer;/ Things fall apart; the centre cannot hold;/Mere anarchy is loosed upon the world.” (1919).
[12] Protagonista do romance de Achebe.