O Artista Negro e a Montanha Racial + Jazzonia (1926)

Osmundo Pinho
12 min readJun 18, 2023

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Langston Hughes[1]

Tradução: Osmundo Pinho

O Artista Negro e a Montanha Racial[2]

Um dos mais promissores dentre os jovens poetas negros me disse certa vez: “Quero ser um poeta — não um poeta negro”, querendo dizer, creio eu, “quero escrever como um poeta branco”; significando subconscientemente, “eu gostaria de ser um poeta branco”; significando por trás disso, “Eu gostaria de ser branco.” (1) E eu lamento que o jovem tenha dito isso, pois nenhum grande poeta jamais teve medo de ser ele mesmo. E eu duvidava então que, com seu desejo de fugir espiritualmente de sua raça, esse rapaz fosse algum dia um grande poeta. Mas esta é a montanha que se interpõe no caminho de qualquer verdadeira arte negra na América — esse impulso dentro da corrida em direção à branquitude, o desejo de derramar a individualidade racial no molde da padronização americana e de ser o menos negro e o mais americano possível.

Mas vejamos os antecedentes imediatos desse jovem poeta. Sua família pertence ao que suponho que se possa chamar de classe média negra: pessoas que não são de forma algumas ricas, mas nunca se sentem desconfortáveis ou famintas — pessoas presunçosas, satisfeitas, respeitáveis, membros da igreja batista. O pai vai trabalhar todas as manhãs. Ele é o camareiro-chefe de um grande clube branco. A mãe às vezes costura roupas chiques ou supervisiona festas para as famílias ricas da cidade. As crianças vão para uma escola mista. Em casa, leem jornais e revistas brancos. E a mãe costuma dizer “não seja como os negros” (niggers) quando os filhos não se comportam bem. Uma frase frequente do pai é: “Olha como um homem branco faz as coisas bem”. E assim a palavra “branco” passa a ser inconscientemente um símbolo de todas as virtudes. Ele vale para as crianças beleza, moralidade e dinheiro. O sussurro de “eu quero ser branco” corre silenciosamente em suas mentes. A casa desse jovem poeta é, acredito, uma casa bastante típica da classe média negra. Vê-se imediatamente como seria difícil para um artista nascido em tal casa interessar-se em interpretar a beleza de seu próprio povo. Ele nunca é ensinado a ver essa beleza. Ele é ensinado a não vê-la ou, se a vê, a se envergonhar quando não está de acordo com os padrões caucasianos.

Para a cultura racial, o lar de um negro autointitulado de “classe alta” não tem nada melhor a oferecer. Em vez disso, talvez haja mais imitação de coisas brancas do que em um lar menos culto ou menos rico. O pai talvez seja médico, advogado, proprietário de terras ou político. A mãe pode ser assistente social, ou professora, ou pode não fazer nada e ter uma empregada. O pai costuma ser de pele escura, mas geralmente se casou com a mulher mais clara que pôde encontrar. A família frequenta uma igreja elegante onde poucos rostos realmente pretos podem ser encontrados. E eles próprios traçam uma linha de cor (color line). No Norte, eles vão a cinemas e filmes de brancos. E no Sul eles têm pelo menos dois carros e casa, “como os brancos”. Maneiras nórdicas, rostos nórdicos, cabelo nórdico, arte nórdica (se houver) e um paraíso Episcopal. Uma montanha muito alta, de fato, para o aspirante a artista racial escalar a fim de descobrir a si mesmo e a seu povo.

Mas também existem as pessoas das classes baixas, o chamado elemento comum, e eles são a maioria — louvado seja o Senhor! As pessoas que tomam um gole de gim nas noites de sábado e não são muito importantes para si mesmas ou para a comunidade, ou muito bem alimentadas, ou muito eruditas para observar o mundo preguiçoso girar. Eles moram na Seventh Street em Washington ou na State Street em Chicago e não se importam muito se são como os brancos ou qualquer outra pessoa. A alegria deles corre, — bang! — em êxtase. Sua religião eleva-se como um berro. Trabalhe talvez um pouco hoje, descanse um pouco amanhã. Jogue um pouco. Cante um pouco. Oh, vamos dançar! Essas pessoas comuns não têm medo dos “spirituals”, como por muito tempo tiveram seus irmãos mais intelectuais, e o jazz é seu filho. Eles fornecem uma riqueza de material colorido e distinto para qualquer artista, porque ainda mantêm sua própria individualidade diante das padronizações americanas. E talvez essas pessoas comuns deem ao mundo seu verdadeiro grande artista negro, aquele que não tem medo de ser ele mesmo. Enquanto o negro de classe alta diria ao artista o que fazer, o povo pelo menos o deixa em paz quando ele aparece. E eles não têm vergonha dele — se é que sabem que ele existe. E eles aceitam a beleza dele sem questionar.

Certamente existe, para o artista negro americano que pode escapar das restrições que os mais “avançados” de seu próprio grupo lhe impõem, um grande campo de material não utilizado pronto para sua arte. Sem sair de sua raça, e mesmo entre as classes melhor posicionadas com sua cultura “branca” e modos conscientemente “americanos”, mas ainda negras o suficiente para serem diferente, há matéria suficiente para fornecer a um artista negro uma vida inteira de trabalho criativo. E quando ele escolhe tocar nas relações entre negros e brancos neste país, com seus inúmeros tons e subtons, certamente, e especialmente para a literatura e o drama, haverá um suprimento inesgotável de temas à mão. A estes, o artista negro pode dar sua individualidade racial, sua herança de ritmo e calor, e seu humor incongruente, que tantas vezes, como no Blues, torna-se riso irônico misturado com lágrimas. Mas olhemos novamente para a montanha.

Uma proeminente dona de um clube negro na Filadélfia pagou onze dólares para ouvir Raquel Meller cantar canções populares da Andaluzia. Mas ela me disse algumas semanas antes que não pensaria em ir ouvir “aquela mulher”, Clara Smith, uma grande artista negra, cantar canções folclóricas negras (2). E muitas igrejas negras de classe alta, mesmo agora, não sonham em empregar um spiritual em seus serviços religiosos. As melodias monótonas dos hinários dos brancos são as preferidas. “Queremos adorar o Senhor correta e silenciosamente. Não acreditamos em ‘gritar’. Sejamos enfadonhos como os nórdicos”, dizem, com efeito.

O caminho para o artista negro sério, então, que produziria uma arte racial, é certamente pedregoso e a montanha é alta. Até recentemente, ele quase não recebia incentivo para seu trabalho, nem de brancos nem de negros. Os bons romances de Chesnutt esgotam-se sem que nenhuma das raças perceba sua passagem. O charme singular e o humor do verso dialetal de Dunbar trouxeram a ele, em sua época, basicamente o mesmo tipo de encorajamento que alguém daria a uma aberração de circo (Um homem de cor escrevendo poesia! Que estranho!) ou a um palhaço (Que divertido!) (3).

A atual moda de coisas negras, embora possa fazer tanto mal quanto bem para o artista de cor em desenvolvimento, pelo menos fez isso: chamou, a força, a atenção de seu próprio povo para seu trabalho, quando por tanto tempo, a menos que a outra raça o tenha notado de antemão, ele era um profeta com pouca honra (4). Eu entendo que Charles Gilpin atuou por anos em teatros negros sem nenhuma aclamação especial de seu próprio povo, mas quando aplausos na Broadway o chamaram oito vezes de volta ao palco, os negros também começaram a render-lhe todas as homenagens. (5). Conheço um jovem escritor de cor, trabalhador braçal durante o dia, que vinha escrevendo muito bem para as revistas negras há alguns anos, mas foi apenas quando ele invadiu recentemente as publicações de brancos e que seu primeiro livro foi aceito por uma importante editora de Nova York, que os “melhores” negros de sua cidade se deram ao trabalho de descobrir que ele morava ali. Então, quase imediatamente, eles decidiram dar um grande jantar para ele. Mas as damas da sociedade tiveram o cuidado de sussurrar para mãe dele que talvez fosse melhor ela não comparecer. Elas não tinham certeza se ela teria um vestido de noite (6).

O artista negro trabalha contra uma onda de críticas severas e mal-entendidos de seu próprio grupo e contra subornos não intencionais dos brancos. “Oh, seja respeitável, escreva sobre pessoas legais, mostre como somos bons”, dizem os negros. “Seja estereotipado, não vá longe demais, não destrua nossas ilusões sobre você, não nos divirta muito a sério. Nós vamos pagar a você”, dizem os brancos. Ambos teriam dito a Jean Toomer para não escrever “Cane”. As pessoas de cor não elogiaram. Os brancos não compraram. A maioria das pessoas de cor que leram “Cane” a odeia. Eles têm medo disso. Embora os críticos tenham dado boas críticas, o público permaneceu indiferente. No entanto (com exceção da obra de Du Bois) “Cane” contém a melhor prosa escrita por um negro na América. E como o canto de Robeson, é verdadeiramente racial (7).

Mas, apesar da intelectualidade negra nordicizada e dos desejos de alguns editores brancos, já temos uma literatura negra americana honesta conosco. Agora aguardo a ascensão do teatro negro. Nossa música folclórica, tendo alcançado fama mundial, oferece-se ao gênio do grande compositor negro americano que está por vir. E na próxima década espero ver o trabalho de uma escola crescente de artistas de cor que pintem e modelem a beleza de rostos escuros e criam com novas técnicas as expressões de seu próprio mundo da alma. E os dançarinos negros que dançarão como chamas e os cantores que continuarão a levar nossas canções a todos que ouvirem, estarão conosco em número ainda maior amanhã.

A maioria dos meus próprios poemas são raciais em tema e tratamento, derivados da vida que conheço. Em muitos deles tento apreender e manter alguns dos significados e ritmos do jazz. Sou tão sincero quanto sei ser nesses poemas e, no entanto, depois de cada leitura, respondo a perguntas como estas de meu próprio povo: Você acha que negros devem sempre escrever sobre negros? Eu gostaria que você não lesse alguns de seus poemas para os brancos. Como você encontra algo interessante em um lugar como um cabaré? Por que você escreve sobre negros? Você não é negro. O que te faz fazer tantos poemas de jazz?

Mas o jazz para mim é uma das expressões inerentes à vida do negro na América: o eterno tum-tum batendo na alma do negro — o tum-tum da revolta contra o cansaço em um mundo branco, um mundo de trens do metrô e trabalho, trabalho, trabalhar; o tum-tum da alegria e do riso, e a dor engolida por um sorriso. No entanto, a clubwoman da Filadélfia tem vergonha de dizer que sua raça o criou e ela não gosta que eu escreva sobre isso. O velho subconsciente “branco é melhor” passa por sua mente. Anos de estudo com professores brancos, uma vida inteira de livros, fotos e papéis brancos, e boas maneiras, moral e padrões puritanos fizeram com que ela não gostasse dos spirituals. E agora ela torce o nariz para o jazz e todas as suas manifestações — assim como quase tudo o mais distintamente racial. Ela não liga para os retratos de negros de Winold Reiss porque eles são “negros demais”(8). Ela não quer uma imagem verdadeira de si mesma de ninguém. Ela quer que o artista a lisonjeie, para fazer o mundo branco acreditar que todos os negros são tão presunçosos e quase brancos de alma quanto ela deseja ser. Mas, a meu ver, é dever do artista negro mais jovem, se ele aceita quaisquer deveres de outsiders, mudar pela força de sua arte aquele velho sussurro “eu quero ser branco”, escondido nas aspirações de seu povo, para “Por que eu deveria querer ser branco? Eu sou um negro — e lindo!”

Portanto, tenho vergonha do poeta negro que diz: “Quero ser um poeta, não um poeta negro”, como se seu próprio mundo racial não fosse tão interessante quanto qualquer outro mundo. Também me envergonho do artista de cor que passa da pintura de rostos negros para a pintura de crepúsculos à maneira dos acadêmicos, porque teme a estranha falta de brancura de suas próprias feições. Um artista deve ser livre para escolher o que faz, certamente, mas também nunca deve ter medo de fazer o que quiser.

Deixe o barulho das bandas negras de jazz e a voz estrondosa de Bessie Smith cantando o Blues penetrar nos ouvidos fechados dos quase-intelectuais de cor até que eles ouçam e talvez entendam. Deixe Paul Robeson cantando Water Boy, e Rudolph Fisher escrevendo sobre as ruas do Harlem, e Jean Toomer segurando o coração da Geórgia em suas mãos, e Aaron Douglas desenhando estranhas fantasias negras, fazendo com que a presunçosa classe média negra se afaste de seus respeitáveis, livros e papéis brancos comuns para captar um vislumbre de sua própria beleza (9). Nós, jovens artistas negros que criamos agora, pretendemos expressar nosso eu individual de pele escura sem medo ou vergonha. Se os brancos estão satisfeitos, nós estamos contentes. Se não forem, não importa. Sabemos que somos lindos. E feios também. O tantã chora e o tantã ri. Se as pessoas de cor estão satisfeitas, nós ficamos contentes. Se não forem, seu descontentamento também não importa. Construímos nossos templos para o amanhã, fortes como sabemos, e nos colocamos no topo da montanha, livres dentro de nós mesmos.

NOTAS

(1) Hughes provavelmente está se referindo a Countee Cullen (1903–1962), um escritor afro-americano de formação clássica cujos poemas aderiram em grande parte às tradições europeias de forma e métrica.

(2) Raquel Meller (1888–1962), popular cantora e atriz espanhola; Clara Smith (1895–1935), cantora de blues afro-americana que incorporou rotinas de vaudeville e comédia em seus shows, que muitas vezes continham referências sexuais picantes.

(3) Charles Waddell Chestnutt (1858–1932), prolífico escritor afro-americano mais conhecido por seus contos mágicos e seus romances de propósito social, lidando com os custos psicológicos e sociais da linha de cor; Paul Laurence Dunbar (1872–1906), poeta, romancista e contista afro-americano, foi elogiado e castigado por seus poemas em dialeto, que alguns críticos sentiram que reforçavam os estereótipos populares de um Velho Sul romantizado.

(4) Hughes está se referindo ao que hoje é conhecido como Harlem Renaissance, um movimento sociocultural da década de 1920 que testemunhou o florescimento das artes literárias, musicais e visuais afro-americanas. Durante esse período, muitos brancos, fascinados com a arte e a cultura afro-americana, deslocavam-se até o Harlem para experimentar sua excitante vida noturna.

(5) Charles Gilpin (1878–1930) tornou-se o primeiro afro-americano a ser amplamente reconhecido como um ator sério quando interpretou o papel-título em “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill, no início dos anos 1920.

(6) Hughes provavelmente está se referindo a si mesmo nesta anedota.

(7) Com sua mistura de ficção curta, poesia e esboços arcanos, “Cane”, publicado em 1923, é considerado uma das obras estilisticamente mais sofisticadas do Harlem Renaissance, mas ofendeu alguns críticos com suas representações francas da sexualidade e da violência racial. Jean Toomer (1894–1967) considerava “Cane” um canto do cisne, uma mediação final de sua própria relação conflituosa com a América Africana e o sul rural. Após sua publicação, Toomer se recusou a ser classificado como um escritor negro. Paul Robeson (1898–1976), renomado cantor afro-americano, ator e defensor dos direitos humanos globais.

(8) Winold Reiss (1888–1953), artista alemão cujos retratos de afro-americanos foram apresentados na antologia do Harlem Renaissance de Alain Locke, “The New Negro”.

(9) Bessie Smith (1894–1937), a “Imperatriz do Blues”, fez mais de oitenta gravações durante sua curta carreira; Rudolph Fisher (1897–1934), foi um importante romancista, contista e ensaísta afro-americano durante o Harlem Renaissance; Aaron Douglas (1898–1979), uma vez referido como o “decano dos pintores afro-americanos”, foi encorajado por Winold Reiss a incorporar motivos africanos em sua arte.

[1] Langston Hughes (1901–1967) foi uma figura central no Renascimento do Harlem, o florescimento da vida intelectual, literária e artística negra que ocorreu na década de 1920 em várias cidades americanas, particularmente no Harlem. Um grande poeta, Hughes também escreveu romances, contos, ensaios e peças de teatro.

[2] O ensaio foi originalmente publicado em “The Nation” 23 de junho de 1926, pp, 692–693. Traduzido aqui a partir de “Poetry Foudantion” — “ESSAY ON POETIC THEORY” — The Negro Artist and the Racial Mountain — Langston Hughes, publicado pela University of Missouri Press. Copyright © 2002 do Espólio de Langston Hughes. Reimpresso com permissão de Harold Ober Associates Incorporated. Publicação original: 13 de outubro de 2009 — https://www.poetryfoundation.org/articles/69395/the-negro-artist-and-the-racial-mountain .

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Jazzonia

Oh, árvore de prata!

Oh, rios brilhantes da alma!

Em um cabaré do Harlem

Seis jazzistas cabeçudos tocam.

Uma garota dançando, de olhos ousados

Ergue alto um vestido de ouro sedoso.

Oh, árvore cantante!

Oh, rios brilhantes da alma!

Foram os olhos de Eva

No primeiro jardim

Tão ousado demais?

Cleópatra era tão linda

Em um vestido de ouro?

Oh, árvore brilhante!

Oh, rios prateados da alma!

Em um cabaré rodopiante

Seis jazzistas cabeçudos tocam.

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