Medo e Dúvida[1]

Osmundo Pinho
6 min readOct 26, 2020

15 de maio, 1967

Huey P. Newton[2]

O negro dos estratos socioeconômicos inferiores é um homem de confusão. Ele enfrenta um meio-ambiente violento e não tem certeza se não são os seus próprios pecados que atraem a hostilidade da sociedade. Por toda a sua vida lhe ensinaram (explícita ou implicitamente) que ele é uma aproximação inferior de humanidade. Como um homem, ele se encontra vazio daquelas coisas que trazem respeito e senso de merecimento. Ele olha, em volta buscando algo em que por a culpa por essa situação, mas porque ele não tem compreensão sofisticada das condições socioeconômicas, e por causa do negativismo que as instituições e seus pais lhe ensinaram, no final das contas ele culpa a si mesmo.

Quando era uma criança seus pais lhe disseram que não ricos porque “não tivemos a oportunidade de frequentar a escola” ou “soubemos aproveitar as oportunidades educacionais que nos ofereceram”. Eles dizem a seus filhos que as coisas seriam diferentes para eles se eles tivessem boa educação e qualificações, mas muito mais não existe que esses lembretes ocasionais (e frequentemente nem mesmo isso) para estimular o interesse na educação. O povo negro é um grande admirador da educação, mesmo pessoas negras dos extratos socioeconômicos inferiores, mas ao mesmo tempo, eles temem expor-se a ela. Eles tem medo porque se sentem vulneráveis em ter os seus medos atestados; talvez eles descubram que não podem competir com estudantes brancos. A pessoa negra diz a si mesmo que poderia ter feito muito mais se realmente quisesse. O fato é, obviamente, que as supostas oportunidades educacionais nunca estiveram disponíveis para a pessoa negra de baixo estrato socioeconômico, em virtude da singular posição que lhe foi designada na vida.

Greve dos trabalhadores nos serviços de saneamento em Memphis, Tennesse, 1968.

Um monstro de duas cabeças assombra esse homem. Primeiro, sua atitude é a de que ele não tem as habilidades inatas para lidar que os problemas socioeconômicos que o estão confrontando. Em segundo lugar, ele diz a si mesmo que tem a habilidade, mas que simplesmente não se sente forte o bastante para buscar adquirir as habilidades necessárias para manipular o seu meio. Em um esforço desesperado para ganhar auto-respeito, racionaliza que é letárgico; dessa forma ele nega uma ausência de habilidade inata. Se ele tentar descobrir suas habilidades abertamente, ele, e outros, podem vê-lo como ele é — ou como ele não é — e esse é o seu real medo. Ele então se retira para o reino da invisibilidade, mas não sem luta. Ele pode tentar se tornar invisível alisando o seu cabelo, adquirindo um “boss mop”, ou dirigindo um carrão, mesmo que ele não tenha como pagar por isso. Ele torna-se pai de diversas crianças “ilegítimas”, de diversas mulheres diferentes, para fazer exibição de sua masculinidade. Mas, ao final, ele compreende que seus esforços não tem nenhum efeito.

A sociedade responde como se ele fosse uma coisa, uma animal, uma nulidade (nonentity), algo que deve ser ignorado ou pisado. É exigido dele que respeite leis que não o respeitam. É exigido dele que engula um código de ética que age sobre ele, mas não para ele. Ele está confuso, e em constante estado de raiva, de vergonha, de dúvida. Esse estado psicológico permeia todas as suas relações interpessoais. O que determina sua visão sobre o sistema social. O seu desenvolvimento psicológico é prematuramente reprimido. Essa dúvida começa muito cedo e continua através de toda a sua vida. Os pais passam isso para a criança e o sistema social reforça o medo, a vergonha e a dúvida. Na terceira ou quarta série ele pode se encontrar dividindo a sala de aula com estudantes brancos, mas quando a turma se separa para exercícios de leitura, ele vê a si mesmo em um grupo, na mesa reservada aos estudantes de baixo rendimento. Esse pode ser um esforço completamente inocente do sistema escolar. A professora pode não perceber que os estudantes negros temem (de fato tem certeza) que negro significa “burro” e branco “inteligente”. As crianças não percebem que a vantagem que as crianças brancas tem em casa, é o que conta para a situação. É geralmente aceito que a criança é pai do homem; isso é bem verdade para pessoas negras de baixo extrato socioeconômico.

Com quem, com o que, pode ele, um homem, identificar-se? Enquanto criança ele não tinha nenhuma figura masculina permanente com quem identificar-se; como homem ele não vê nada na sociedade como que ele possa identificar-se, como uma extensão de si mesmo. Sua vida é construída sobre desconfiança, vergonha, dúvida, culpa, inferioridade, confusão de papéis, isolamento e desespero. Ele sente que ele é algo menos que um homem; e isso é evidente em sua conversa: “O homem branco é “O HOMEM”, ele tem tudo, e ele sabe tudo, e o preto (nigger) não é nada”.[3] Em uma sociedade em que um homem é avaliado de acordo com sua ocupação e posses materiais, ele não tem propriedades. Ele é desqualificado, e mais frequentemente que o inverso, está subempregado ou desempregado. Sua mulher (que é capaz de garantir um trabalho como empregada doméstica, limpando a casa para pessoas brancas) é frequentemente a provedora do lar. Ele é, dessa forma, visto como um completo inútil pela sua mulher e pelos seus filhos[4]. Ele é um fracassado tanto dentro como fora de casa. Ele não consegue prover ou proteger a sua família. Ele é invisível, uma nulidade. A sociedade não o reconhece como um homem. Ele é um consumidor e não um produtor.[5] Ele depende do homem branco (“O HOMEM”) para alimentar a sua família, para lhe dar um emprego, educar seus filhos, para servir como um modelo que ele tenta imitar. Ele é dependente e odeia “O HOMEM” e a si mesmo. Quem é ele? Ele é o mesmo velho adolescente ou ele é o escravo que ele costumava ser?

O que ele fez, para ser tão negro e triste (black and blue)?[6]

Tradução: Osmundo Pinho

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Cachoeira)

[1] Traduzido a partir de “Fear and Doubt — May 15, 1967” In. ___ . To Die for the People. Edited by MORRISON, Toni. City Light Books. San Francisco. 2009. Pp. 77- 79.

[2] Newton nasceu em Monroe, Louisiana, em 1942. Foi criado em Oakland, Califórnia, onde fundou com Bob Seale em 1966 o Partido dos Panteras Negras, quando ambos ainda eram militantes estudantis no Merrit College. Newton concluiu o Ensino Médio sem ler ou escrever, alfabetizando-se sozinho posteriormente. Durante a adolescência foi preso diversos vezes por crimes menores. Na faculdade leu Karl Marx, Frantz Fanon, Malcon X e outros autores revolucionários. Em 1967 envolveu-se em um incidente no qual morreu o policial John Frey, Newton foi preso e condenado em primeira instância, sendo posteriormente absolvido Em 1980 obteve PhD em “History of Consciousness” pela Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Em 1989 foi morto a tiros por um membro da “Black Guerrilla Family”. É considerado o principal formulador teórico dos Panteras Negras e criador da doutrina do “Intercomunalismo Revolucionário”, fusão do anticolonialismo, do marxismo e da crítica, antecipada, à globalização.

[3] Na cultura brasileira, como sabemos, uma pessoa poderosa — como um político ou uma autoridade — é chamada o “homem” ou “home”.

[4] Joao Vargas descreve com precisão o enraizamento histórico desse círculo vicioso para a região de Los Angeles em “ Catching Hell in the City of Angels” (2006).

[5] Aqui o marxismo de Newton se estende como uma categoria da subjetividade.

[6] O autor se refere a canção gravada por Louis Armstrong “(What Did I Do to Be So)Black and Blue?” em 1955, e originalmente composta por Thomas “Fats” Waller em 1929. A canção diz: “I’m white, inside but that dont help my case/’Cause I cant hide what is in my face/How will it end, aint got a friend/My only sin is in my skin/What did I do to be so black and blue?” (Eu sou Branca por dentro mas isso não ajuda em caso/Porque não posso esconder o que tenho na face/Como isso vai acabar, eu não tenho um amigo/Meu único pecado está em minha pele/O que foi que eu fiz para ser tão negra e triste).

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