Antinegritude e Representação: Descolonizando a Biblioteca na Universidade Periférica[i]

Osmundo Pinho
8 min readJun 29, 2021

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Esquecer Lobato?

Em 2020, como em momentos anteriores a imprensa brasileira noticiou ampla polemica em torno da obra do escritor brasileiro Monteiro Lobato. Seria ele racista?[ii].Lobato não é qualquer autor. Prolífico, publicou dezenas de livros, dentre estes uma coleção de doze livros infantis, objetos da polêmica, além de obras ficcionais adultas e ensaios. Restam poucas dúvidas hoje, todavia de que, Lobato era de fato racista, assim como sua obra[iii].

Presentes de uma tia querida, eu mesmo, timido garoto negro, li e reli inúmeras vezes os livros infantis do autor, que se tornaram meus melhores amigos, assim como a companhia de seus personagens tornava para mim o mundo um pouco mais vivivel.

O problema seria então mais complicado. A minha própria relação com a obra e o conforto que os livros me ofereceram, poderiam retratar um quadro amargo para a subjetivação de uma apreensão do mundo, que agora posso ver, é fundamentalmente antinegra. Como Oswaldo de Camargo em “Genoveva” devo agora falar aos meus parentes ausentes, “tão tristes no meu pensamento[iv], não para esquecer Lobato, ou esquecer a mim mesmo, mas para lembrar desse momento de perigo em que a salvação de si dependeu, se desprendeu, do choque de ver a si próprio refletido em um espelho malicioso. [1]

A representação é um cárcere

E esse espelho é um abismo sedutor. Não se trata apenas do compromisso ideológico do texto lobatiano com a eugenia e o racismo vigente e vigoroso na primeira metade do século XX, mas da própria relação com a palavra escrita e com a representação. O que ela significa para a negritude em um mundo antinegro? O que significa, para o sujeito negro encontrar-se ou perder-se a si mesmo na trama tremenda dos signos linguísticos fixados em páginas volantes?

Em “A Escritura e a Diferença” Derrida diz: “Portanto o poeta é na verdade o assunto do livro, a sua substância e o seu senhor, o seu servidor e o seu tema. E o livro é na verdade o sujeito do poeta, ser falante e conhecedor que escreve no livro sobre o livro. Este movimento pelo qual o livro, articulado pela voz do poeta se dobra e se liga a si, torna-se sujeito em si e para si, este movimento não é uma reflexão especulativa ou crítica, mas em primeiro lugar poesia e história. Pois o sujeito nele se quebra e se abre ao representar-se[v].

Nesse caso, o caráter insidioso de uma colonização epistemológica — plantação cognitiva[vi] — refere-se a uma dimensão estrutural, implícita na própria negação de outras formas cosmo-epistemológicas, que escapem à economia política do signo e da representação.

A escritora Carolina Maria de Jesus é um fenômeno estético das letras brasileiras. Vivendo e sonhando em meio a miséria mais extrema, a fome e a violência, deu à luz a um flash flamejante de força estética e vislumbre visionário. Carolina leu o que pôde na casa de um patrão rico quando trabalhou como emprega doméstica em São Paulo e também o que podia encontrar no lixão onde buscava, durante o dia, amealhar o que conseguia para o jantar à noite. “Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá… isto é mentira! Mas as misérias são reais[vii]. Em meio a pobreza extrema e ao desespero, as letras, o próprio livro, diário, que escrevia compulsivamente não seria uma salvação, mas uma mensagem em uma garrafa, rumo a um leitor perdido em uma praia solitária. Contudo, representar é muito evidentemente também alienar e recair no compromisso dicotômico suspenso entre o mundo das coisas e o seu significado, entre o signo e a coisa. O sujeito e o objeto. Assim, tornar-se para si mesmo um sujeito é, nessa mediação, representar-se com um Outro, que “se quebra e se abre”. A representação é então o cárcere, cativeiro, que só me permite o reconhecimento pela própria negação.

Afro-fabulação

Como de certa forma coloca T. Nyong´o[viii], negritude pode ser entendida como essa e muitas outras contradições incorporadas em um sentido muito material. Uma materialidade contingente, historicamente concebida em uma estrutura de antagonismos irreconciliáveis. Uma contingencialidade tal, definida pela supressão do simbólico projetada sobre o escravizado ou escravizada, o negro, identificado com seu próprio corpo[ix]. No ambiente do colonialismo escravocrata, no mundo anti-negro, o corpo negro precisa lutar, resistir, objetar em uma cena definida, para ser reconhecido como identificado a uma subjetividade coerente e legível[x]. Esse reconhecimento, que parece ser possível apenas através da mediação da escrita, se apresenta dessa forma como uma contradição.

Como pergunta Tavia Nyong´o em “Afro-Fabulations”, que poética poderia escapar a armadilha gravitacional da representação?

The objection to the argument I have been making against the politics of representation and representability (…) will be both immediate and unanswerable. This objection holds that the social and political world we live in works by means of representation and through socially recognized identities”.[xi]

Entretanto, podemos argumentar, o mundo antinegro não é[2] o único mundo em que vivemos. No Brasil, na América Latina, em muitos contextos da diáspora africana habitamos um mundo negro, como um duplo ou transformação[xii]. A Améfrica Ladina[xiii] das tradições culturais, da religiosidade, da música, da performance[xiv] e de inúmeras formas culturais expressivas. Esse mundo negro não está baseado ou encarcerado na representação. Mas é na confrontação reflexa entre esses mundos, em uma borda ou limiar, que o sujeito negro atravessa o espelho e com horror ou deleite se reconhece também nesses fantasmas antinegros. Vivemos assim a nossa negritude através do espelho. Em meio a essas metamorfoses, a mensagem em uma garrafa ou palavra roubada é nossa perdição.

Descolonizando a Biblioteca na Periferia

A universidade onde trabalho, na cidade de Cachoeira, no estado da Bahia, considerada a mais preta do Brasil, está bem situada nesse território ancestral, de dor, luta, festa e resistência. Povoada por inúmeras tradições afro-brasileiras, a região também é muito pobre[xv].

Em Cachoeira estão os cursos de arte e humanidades da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o que se adequa bem as próprias tradições culturais e artísticas da cidade, lar de uma importante cena de música reggae e de inúmeros ateliês de escultores em madeira, além dos sambas e candomblés. Como em outras universidades federais do Brasil pós-políticas de ação afirmativa racial, observamos em Cachoeira a mesma bela e terrível efervescência política e cultural negra. Antessala de uma iminente primavera afro-brasileira? Oxalá que sim. Como em outros contextos, a entrada maciça de negros e pobres nas universidades de maior prestígio no Brasil, que são as públicas, desencadeou uma onda de reinvindicações pela descolonização do conhecimento e dos currículos. E com esse ponto quero concluir, tendo em vista o discutido acima sobre a relação do sujeito negro com uma biblioteca não apenas colonial e racista, mas antinegra. Devemos esquecer abandonar Lobato? Mas também Marx? Foucault? E autores como Achille Mbembe e mesmo Fanon, tão ocidentalizados? Ora, como nos diz Spillers:

It is important to remember that blackness is defined here in terms of social relationality rather than identity; thus blackness incorporates subjects normatively defined as black, the relations among blacks, whites, and others, and the practices that produce racial difference. Blackness marks a social relationship of dominance and abjection and potentially one of redress and emancipation: it is a contested figure at the very center of social struggles”. [xvi]

Ou seja, o mundo antinegro também é nosso mundo, assim como as tradições africanas e a história das lutas e insurreições negras nos constituem. Assim como a história do racismo e da antinegritude construiu o mundo onde habitamos e com qual devemos nos relacionar. Através do espelho, o fantasma pervertido de nós mesmos nos interroga. Esse mundo não é apenas o mundo racista do eugenismo, mas a própria máquina que engendra sentido através do signo e da representação. Dizer a nós mesmos nesse limiar é enfrentar esses fantasmas, que nos sussurram atraves do espelho.

Na nova refavela do século XXI[xvii], no caldeirão efervescente da UFRB em Cachoeira, a multidão de subjetividades desconformes, racializadas e queers clamam por uma nova aurora, não apenas para a emancipação racial mas também para uma emancipação do cativeiro da representação. E para uma nova relação com a palavra escrita e com as formas não-representacionais de conhecimento. Tal horizonte é utópico e não depende de voluntarismos, mas da atividade consciente que tece dia a dia o fim do mundo. O fim deste mundo e de suas metamorfoses. Como no poema medieval:

“Dies irae, dies illa
Solvet saeclum in favilla”[xviii].

[i] Este ensaio foi originalmente preparado para o seminário DECOLONISATION IN THE 2020s, organizado pelo Museu de Arte de São Paulo (MASP)/Decolonising Arts Institute and Goldsmiths College, Department of Visual Cultures e publicado em inglês como “Anti-Blackness and Representation: Decolonising the Library at the Peripheral University” (https://www.afterallartschool.org/essays/anti-blackness-and-representation-decolonising-the-library-at-the-peripheral-university/ ).

[ii] BRUNATO, INGREDI. Aventuras na História · Secretário da cultura critica reedição de Monteiro Lobato que suprime trechos racistas. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/secretario-cultura-critica-reedicao-de-monteiro-lobato-que-suprime-trechos-racistas.phtml. Acesso: 12 de janeiro de 2021.

Governo Bolsonaro critica reedição de Monteiro Lobato que suprime trechos racistas — 22/12/2020 — Ilustrada — Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/governo-bolsonaro-critica-reedicao-de-monteiro-lobato-que-suprime-trechos-racistas.shtml. Acesso: 12 de janeiro de 2021.

[iii] FERES JÚNIOR, João, Leonardo Fernandes Nascimento e Zena Winona Eisenberg. Monteiro Lobato e o Politicamente Correto. DADOS — Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 56, no 1, 2013, pp. 69 a 108.

[iv] CAMARGO, Oswaldo. Raiz de um Negro Brasileiro. São Paulo. Ciclo Contínuo Editorial. 2015.

[v] DERRIDA, Jacques. A Escritura e A Diferença. São Paulo. Perspectiva. 1967. P. 55.

[vi] MOMBAÇA, Jota. A plantação Cognitiva. MASP/AFTERALL. #9. 2020. https://masp.org.br/uploads/temp/temp-QYyC0FPJZWoJ7Xs8Dgp6.pdf Acesso: 12 de janeiro de 2021.

[vii] JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo. Diário de uma Favelada. São Paulo. Círculo do Livro. 1960. P. 41.

[viii] NYONG’O, Tavia. Afro-Fabulations : The Queer Drama of Black Life. New York University Press, 2018.

[ix] SPILLERS, Hortense J. Mama’s baby, papa’s maybe: An American grammar book. In: Diacritics, vol. 17, no 2, Culture and counter memory: The “American” Connection, 1987, p. 64–81.

[x] MOTEN, Fred. In the break. The aesthetics of black radical tradition. Minneapolis/London. University of Minnesota Press, 2003.

[xi] NYONG´O idem p. 156.

[xii] No sentido estruturalista, como em LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In: _______. Antropologia estrutural.Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. 1975, p. 237–265.

[xiii] GONZALEZ, Lelia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo brasileiro, no 92/93, jan./jun.-1988, p. 69–82.

[xiv] NYONG´O idem P. 155.

[xv] Ver GIUGLIANI, Beatriz. Um olhar etnográfico sobre a escola e a formação de identidade cultural: reflexões entre contextos pluriculturais e educação. Cachoeira. 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdades e Desenvolvimento)- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

IPHAN. Cachoeira — BA. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/112 . Acesso 29/07/2018.

[xvi] HARTMAN, Saidiya. Scenes of subjection. Terror, slavery, and self-making in nineteenth-century America. New York Oxford. Oxford University Press, 1997. P. 56–57.

[xvii] Referência à canção “Refavela” de Giberto Gil no álbum do mesmo nome (1977).

[xviii]Dia da ira, aquele dia/Em que o mundo se dissolverá em cinzas”.

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